just the noteFlávio Roberto Lorenzato Fugyama

Quase tão antiga como o mundo, a arte musical sempre coloriu com sua harmonia a vida cotidiana dos homens. Ciente do poder da música, também a liturgia católica sorveu e inspirou tocantes harmonias, as quais cumulam de consolação e fervor as almas dos fiéis como as elegantes notas musicais preenchem os pentagramas.

Já o Doutor da Graça, o grande Santo Agostinho, testemunhou o relevante papel que teve a música sacra em sua vida espiritual – sobretudo por ocasião das cerimônias litúrgicas presididas por Santo Ambrósio –, as quais o ajudaram a encontrar o caminho da Verdade: “Quanto chorei ouvindo vossos hinos, vossos cânticos, os acentos suaves que ecoavam em vossa Igreja! Que emoção me causavam! Fluíam em meu ouvido, destilando a verdade em meu coração. Um grande elã de piedade me elevava, as lágrimas corriam-me pela face, e me sentia plenamente feliz”.[1]

Esta poética recordação narrada nas Confissões tem seu fundamento teológico, pois, se as perfeições das criaturas captadas pelos nossos sentidos evocam em no espírito a absoluta perfeição de Deus, também a boa música, ao penetrar em nossos ouvidos, desperta as tendências naturais pelas quais  somos atraídos às sendas dAquele que é, em essência, “o Caminho, a Verdade e a vida” (cf. Jo 14, 6). Como afirmou Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, inspirador e mestre do Fundador dos Arautos, “a música é uma arte mais espiritual que material, melhor do que a simples matéria, para ilustrar a representação de Deus na Terra e no Céu Empíreo”.[2]Blog notes

Por esta razão, o Seminário São Tomás de Aquino procura “cultivar com sumo cuidado o tesouro da música” sacra na formação cultural de seus membros, tal como incentivara o Concílio Vaticano II, a respeito da Schola cantorum “nos Seminários, Noviciados e casas de estudo de religiosos de ambos os sexos, bem como noutros institutos e escolas católicas”.[3]

O canto gregoriano, modelo supremo de melodia.

Como recomenda o concílio, e como oportunamente recordava João Paulo II, “no tocante às composições musicais litúrgicas, faço minha a ‘regra geral’ formulada por São Pio X nestes termos: ‘Uma composição religiosa é tanto mais sagrada e litúrgica quanto mais se aproxima — no andamento, na inspiração e no sabor — da melodia gregoriana; e é tanto menos digna do templo quanto mais se distancia desse modelo supremo”[4].

Neste canto magnífico, o literato converso ao catolicismo Joris-Karl Huysmans via um símile de mil maravilhas na ordem do universo – como aquelas expressas na arquitetura, na escultura, na pintura e mesmo na literatura –, das quais deixou-nos um encantador e inesquecível elogio, em linhas que transluzem sua capacidade descritiva: “O canto gregoriano parece tomar emprestado do gótico suas nervuras floridas, suas flechas recortadas, suas rodas de gaze, seus triângulos de rendas leves e finas como vozes infantis. Ele passa, então, dum extremo ao outro, da amplidão das aflições ao infinito das alegrias.

“Outras vezes, ele, como a escultura, dobra-se para o júbilo do povo, associando-se às alegrias inocentes, aos risos esculpidos nos velhos frontispícios. Ele toma — tanto no cântico natalino Adeste Fideles quanto no hino pascoal O Filii et Filiae— o ritmo popular das multidões.

“Tal como os Evangelhos, ele se torna pequeno e familiar, submete-se aos humildes desejos dos pobres e lhes proporciona uma melodia de festa, fácil de reter na memória, que os eleva às puras regiões onde suas almas cândidas se prostram aos pés indulgentes de Cristo.

“Criado pela Igreja, aprimorado por ela nos corais da Idade Média, o canto gregoriano é a paráfrase flutuante e movente da imóvel estrutura das catedrais. Ele é a interpretação imaterial e fluida das telas dos pintores primitivos. Ele é a tradução alada das prosas latinas compostas outrora pelos monges elevados, em seus claustros, fora do tempo”.[5]

Polifonia e instrumentos ecoando a insondável grandeza dos mistérios divinos.

Os membros do Seminário servem-se também, e muito, da polifonia sacra. Ora com os vivos ritmos de Francisco Guerrero, ou com os piedosos acordes de Tomás Luis de Victoria, mas sobretudo pelas composições do mestre Giovanni Perluigi da Palestrina, buscam a harmonia apropriada ao “espírito da ação litúrgica”.[6]

Ademais, posto que a Constituição Conciliar Sacrossanctum Concilium permite a utilização no culto divino de instrumentos musicais, “contanto que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis” (n. 120), o coro e orquestra do Seminário não se abstêm de cultivar sua variegada participação, pois como notava a santa musicista Hildegarda de Bingen, “também os instrumentos musicais, pela emissão de múltiplos sons, podem instruir espiritualmente os homens”[7].

Deste modo, com a execução de composições de Johann Sebastian Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, e de Georg Friedrich Händel – estas últimas com especial destaque –, querem eles, de alguma forma, ecoar a insondável grandeza dos mistérios celebrados na Sagrada Liturgia, elevando assim os corações e instruindo os espíritos.

A música pode aumentar a inteligência e acalmar os ânimos?

Apenas os argumentos da teologia bastariam para que o Seminário São Tomás de Aquino fosse tão musical. No entanto, há mais. Assim como a música pode ser um poderoso meio de instrução espiritual, pode colaborar frutuosamente no mero plano natural, para a própria formação e desenvolvimento das faculdades cognitivas e intelectuais dos seminaristas.

Para tomarmos o resultado de apenas algumas de inúmeras pesquisas realizadas neste sentido, a Universidade de Toronto, Canadá, concluiu que crianças que recebem aulas de música têm um coeficiente intelectual superior às demais. Os jovens aprendizes de instrumentos ou canto demonstraram possuir coeficientes mais desenvolvidos do que os das aulas de teatro. Estes últimos revelavam uma melhor capacidade de adaptação em sua conduta social, mas os que recebiam aulas de música alcançavam notas mais altas nos exames escolares[8].

De modo semelhante, estudiosos da Universidade de Hong Kong, após examinarem 90 crianças e adolescentes de 6 a 15 anos, das quais metade estava integrada numa orquestra escolar a cerca de cinco anos, concluíram que as aulas de música melhoram a memória das crianças e podem ser benéficas para seus estudos. A pesquisa demonstrou, inclusive, que o fato de os adolescentes executarem escalas no piano desenvolve a parte esquerda do cérebro, onde estão concentradas a memória verbal e as atitudes musicais. Ao cabo de um ano, as crianças que deixavam a atividade musical pioravam sua memória verbal em relação aos que nela se mantinham, mas continuavam ainda superiores aos que nunca tinham estudado música[9].

No tocante à formação temperamental, um grupo de pesquisadores da universidade de Derby, na Inglaterra, chegou a um resultado curioso numa de suas pesquisas. Segundo esses estudiosos, “a música de Mozart tem o curioso poder de apaziguar a agressividade das crianças e melhorar o seu rendimento escolar. Sobretudo nas aulas de matemática os efeitos foram considerados “surpreendentes”[10].

Neste sentido a respeito da música sacra, antes mesmo dos pesquisadores, o pensador católico brasileiro, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira recomendava: “para quem sofre de problemas psicológicos, nervosos, parece propriamente, a meu ver, a cura. Uma pessoa que por muito tempo ouvisse este estilo de música, deixando-se influenciar por esta harmonia, seria introduzida no estado de equilíbrio perfeito. Além desta música ser orto-psíquica, com a propriedade de colocar habitualmente o temperamento interior neste estado de espírito, produz na alma um estado adequado ao caminho da santificação”[11]. É o que, em outras palavras, disse o Papa Bento XVI: “a música harmoniza o nosso interior[12].

Assim, através do canto gregoriano, da polifonia sacra e da harmonização instrumental, os estudantes do ITTA e do IFAT buscam aprimorar o quanto possível sua formação intelectual, e, sobretudo, aprofundar cada vez mais uma real e verdadeira forma de oração enquanto elevação da mente a Deus. Como, aliás, recordava Bento XVI, “quando o homem chega a estabelecer uma relação íntima com Deus, não basta a linguagem falada”[13]. O canto nos une, nos arrasta, nos envolve, nos transforma e nos eleva ao Criador através da virtude da caridade. Por isso, bem disse Santo Agostinho que “cantar é próprio de quem ama”[14].

Por intermédio de Maria Santíssima, que, por certo, cantou melodias inefáveis na Gruta de Belém e no lar de Nazaré, para o encanto sobrenatural de seu castíssimo esposo e seu Divino Filho, peçamos a graça de saber utilizar a arte musical para atingir a plenitude da santidade à qual fomos chamados, e, assim, sermos na Igreja, afinados, sonoros e perfeitos “‘instrumentos’ do grande ‘Compositor’, cuja obra é a harmonia do universo”.[15]


[1] Santo Agostinho. Confissões, IX, 6, 14.

[2] Plinio Corrêa de Oliveira. Conferência. 8 set. 1979. Arquivo do ITTA.

[3] Cf. Sacrosanctum Concilium, 114-115.

[4] In Revista Arautos do Evangelho, n. 25, p. 18

[5] HUYSMANS, Georges Charles in RIDDER, Guy, apud Revista Arautos do Evangelho, n. 28, p. 51.

[6] Sacrosanctum Concilium, 116.

[7] inFERREIRA, Carmela Werner. inRevista Arautos do Evangelho, n. 69, p. 36.

[8] Cf. Revista Arautos do Evangelho, n. 34, p. 47.

[9] Cf. El Mundo in Revista Arautos do Evangelho, n. 21, p. 44.

[10]in Revista Arautos do Evangelho, n. 59, p. 43.

[11] Plinio Correa de Oliveira. Conferência. 2 mar. 1984. Arquivo ITTA.

[12]Revista Arautos do Evangelho, n. 61, p. 40.

[13] Introducción al espíritu de la liturgia, Joseph Ratzinger, p. 113.

[14] Cf. Cantare amantibus est, Sermo 336, 1.

[15] Palavras de Bento XVI após o concerto do Philharmonia Quartett Berlin, na Sala Clementina, oferecido ao Santo Padre pelo Presidente da Alemanha, Horst Koehler, in Revista Arautos do Evangelho, n. 61, p. 40