Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

I – Os Apóstolos e o Sinédrio perante a Ressurreição

A hipótese de que, tendo morrido Jesus, Seus discípulos roubaram e ocultaram Seu corpo, com o intuito de espalhar o boato de Sua Ressurreição, reaparece com frequência ao longo da História.1

Originou-se ela momentos depois de o Salvador ter operado o grande milagre de retomar Sua vida humana em corpo glorioso. Seus adversários, aqueles mesmos que haviam planejado e exigido Sua morte, compraram o testemunho de soldados venais e — por temor e ódio — puseram em circulação essa hipótese (cf. Mt 28, 11-15).

Ainda nos dias de hoje, não é raro ouvir ecos dessa insolente zombaria.

O contrário de fanáticos e alucinados

Por outro lado, a ideia de considerar a Ressurreição do Senhor um mito nascido da alucinação sofrida por alguns poucos não esteve alheia aos próprios Apóstolos. Foi o que se deu quando ouviram a narração feita pelas Santas Mulheres após seu encontro com Jesus naquele “primeiro dia” (cf. Lc 24, 1-11).

Este mesmo fato comprova que os discípulos não podem ter sido os autores de uma fábula sobre esse milagre, pois a experiência nos mostra o quanto é em função de um grande desejo, ou de um grande temor, que o alucinado passa a ver miragens. Entretanto, a hipótese de que — por pura alucinação — foram os Apóstolos os autores do “mito” da Ressurreição do Senhor não deixou de circular  por meio dos lábios e plumas de hereges, nestas ou naquelas épocas.

Na realidade, eles não haviam compreendido o alcance das afirmações do Divino Mestre sobre o que se passaria no terceiro dia após Sua morte e, portanto, nem chegaram a temer ou desejar a Ressurreição. E isso a tal ponto que não hesitaram em negar a veracidade da narração feita pelas Santas Mulheres. Ou seja, eles demonstraram estar bem no oposto da acusação de terem sido uns fanáticos e alucinados a propósito da Ressurreição, pois não aceitavam sequer a simples possibilidade de ela vir a se tornar efetiva. O exemplo máximo dessa impostação de espírito deu-se com São Tomé, o qual só se rendeu diante de um fato irrefutável: colocar o dedo nas adoráveis chagas de Jesus.

Ademais, negar a veracidade da Ressurreição, lançando a calúnia de ter sido ela uma invenção de alucinados, corresponderia, ipso facto, a reconhecer a existência de um milagre não muito menor: o da conquista e reforma do mundo, levada a cabo por um reduzido número de desvairados.

Domingo de Ressurreição no Cenáculo

A História nos faz conhecer o quanto, na manhã daquele domingo, os Apóstolos estavam na dor e na tristeza (cf. Mc 16, 10). Faltava-lhes a esperança, pois nenhum deles acreditava na hipótese de o Mestre retornar à vida.

Os fatos se sucediam, mas apesar de as Santas Mulheres haverem entrado no Cenáculo com muita agitação para relatar o surpreendente acontecimento de terem encontrado vazio o sepulcro e um Anjo em seu interior, ninguém era levado a supor a Ressurreição. Sem embargo, Pedro e João se deslocaram, em seguida, com Maria Madalena para o sepulcro. Ao retornarem, os dois Apóstolos, disseram ser real o relato das Santas Mulheres: o sepulcro estava vazio (cf. Lc 24, 1-12). Os que viviam em Emaús voltaram para casa muito abatidos, desconsolados e comentando os exageros — segundo eles — da imaginação feminina.

Nesse meio tempo, Maria Madalena regressou ao Cenáculo para euforicamente anunciar o encontro que havia tido com o Senhor. Logo a seguir, as outras Santas Mulheres entraram para narrar a aparição do Senhor quando iam pelo caminho. Contudo, mesmo somando esses episódios aos anteriores, uma vez mais, não creram na palavra delas (cf. Mc 16, 1-11). Pedro, porém, saiu para o sepulcro e, ao regressar, afirmou que de fato o Senhor tinha ressuscitado, pois Ele lhe aparecera (cf. Lc 24, 34). Uns creram, outros não (cf. Mc 16, 14).

À noite, foi a vez dos dois discípulos de Emaús darem seu minucioso testemunho sobre o famoso acontecimento que culminaria com a abertura dos olhos de ambos, “ao partir o pão” (Lc 24, 35). No Cenáculo, depararam-se com todos reunidos e comentando a aparição do Senhor a Pedro. Ainda assim, a maioria continuava negando a Ressurreição de Jesus.

2O Sinédrio considera de frente o milagre

Paralelamente ao que se tratava com tensão, suspense e certo medo no Cenáculo, os príncipes dos sacerdotes e o Sinédrio em geral discorriam sobre a narração feita pelos soldados, a qual tornava patente que Jesus havia ressuscitado. Era uma hipótese árdua igualmente para eles, mas sabiam considerá-la de frente, medindo bem todos os prejuízos que de uma realidade dessas poderiam decorrer.

Na cidade, celebrado já o sábado, os trabalhos haviam sido retomados com toda normalidade, no transcurso do dia. Só no Cenáculo e no Sinédrio dominava a febricitação, àquelas horas de após-ceia. O tema era o mesmo, as testemunhas, porém, bem diferentes, e muito mais os destinatários dos relatos. O dogma da Ressurreição seria fundamentalíssimo para o futuro da Religião e era indispensável haver vários que testemunhassem com solidez de declaração o terem visto Jesus vivo, nos dias logo posteriores à Sua morte. Apesar de Seus insistentes avisos e profecias, se não houvesse testemunhas visuais, difícil seria crer em tão grande milagre.

É bem a essa altura que, estando trancadas as portas e janelas, entrou Jesus no Cenáculo, iniciando-se o trecho evangélico da Liturgia de hoje.

II – Aparição do Senhor no Cenáculo

As sete palavras proferidas por Nosso Senhor no Calvário têm, com muita razão, merecido belíssimos comentários ao longo da História. Mas a primeira palavra por Ele dita aos Apóstolos, ao penetrar no Cenáculo, não merece menos atenção.

Jesus deseja aos Apóstolos a verdadeira paz

36 “Enquanto falavam nisto, apresentou-Se Jesus no meio deles e disse-lhes: 37 ‘A paz seja convosco!’”.

A paz desejada por Nosso Senhor é a única verdadeira entre tantas outras distorcidas e falsas. Quem a deseja para os Apóstolos é o próprio Príncipe da Paz: trata-se da paz messiânica, riquíssima de toda espécie de bens.

Cifra-se ela na tranquilidade nascida de uma vida ordenada, como nos ensina São Tomás, ao afirmar ser impossível sua existência fora do estado de graça: “Ninguém é privado da graça santificante a não ser em razão do pecado, razão pela qual o homem se afasta do verdadeiro fim e estabelece o fim em algo não verdadeiro. Assim sendo, seu apetite não adere principalmente ao verdadeiro bem final, mas a um bem aparente. Por esta razão, sem a graça santificante, não pode haver verdadeira paz, mas somente uma paz aparente”.1

Quando alguém comete um pecado, o corpo, com suas paixões, rebela-se contra a alma, à qual deveria estar submisso. Por sua vez, a alma, que deveria estar na obediência a Deus, fazendo Sua vontade, revolta-se contra Ele. Assim, fica destruída a ordem e, em consequência, a própria paz. Por isso diz-nos o Espírito Santo: “Não há paz para os ímpios” (Is 48, 22).

A única e verdadeira paz foi, portanto, a que Jesus desejou aos discípulos, ao transpor as paredes do Cenáculo, devido à subtileza de Seu corpo glorioso. Ali penetrou Ele da mesma forma como um raio de Sol atravessa o cristal: sem sofrer a menor alteração. Quão grande, divina e paternal doçura deveria caracterizar Seu timbre de voz nessa ocasião!

Os discípulos estavam absorvidos pelo temor

“Mas eles, turbados e espantados, julgavam ver algum espírito”.

A um medo, sucedia outro! Os discípulos enclausuram-se, tomados pelo pânico de que o Sinédrio pudesse acusá-los de haver roubado o corpo do Senhor, e, de forma súbita, veem um “fantasma” que se introduz no hermético recinto através das paredes ou portas e janelas fechadas, sem sequer se anunciar. Por mais essa reação de todos, torna-se demonstrado o quanto lhes era difícil crer na Ressurreição do Senhor, apesar de ser a quarta vez que Ele aparecia.

“O Evangelista indica que o temor influiu nos discípulos para não reconhecerem Jesus, mas julgar que estavam vendo algum espírito. O medo costuma prejudicar o conhecimento claro, e faz com que a pessoa imagine estar vendo fantasmas ou monstros estranhos. […] 3

“O motivo para os discípulos suspeitarem que se tratava de algum espírito é certamente o fato de Ele ter entrado — como diz São João — com as portas fechadas, coisa que só um espírito poderia fazer”.2

Apesar de havê-los saudado com insuperável afeto e feito ouvir o inconfundível timbre de voz do qual tantas saudades tinham, o temor os absorvia. Outro fato determinaria tratar-se do próprio Salvador, e não de um fantasma: Jesus penetrara em seus corações e discernira seus pensamentos, prova patente de ser Ele o próprio Deus,3 pois isto não é possível nem a um espírito.

As chagas, símbolo do poder do Homem-Deus contra o demônio

38 “Jesus disse-lhes: ‘Por que estais turbados, e por que se levantam dúvidas nos vossos corações? 39 Olhai para as Minhas mãos e os Meus pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que Eu tenho’. 40 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés”.

Segundo nossos critérios estritamente humanos, parecer-nos-ia mais lógico, após a Ressurreição, Jesus retomar Sua integridade física, fazendo desaparecer os sinais dos tormentos de Sua Paixão. Por outro lado, considerando os sentimentos de nossa natureza, o exibir as chagas aos discípulos poderia causar-lhes um maior sofrimento, por relembrar-lhes os dramas daqueles terríveis dias de provação. Mas a boa conduta teológica toma como base o princípio infalível: se Deus fez, era o melhor; por isso, resta-nos perguntar quais os motivos de tal conduta.

Antes de mais nada, para Sua própria glória, como também se dará com os santos mártires ao retomarem seus respectivos corpos, no dia do Juízo. As cicatrizes oriundas dos tormentos por eles sofridos em defesa da Fé reluzirão por toda a eternidade. “Com efeito, as cicatrizes das feridas recebidas por causa digna e justa são um eloquente e glorioso testemunho dos méritos e valor de quem as ostenta”.4 Jesus Cristo tinha todo poder para fazer desaparecer Suas chagas cicatrizadas, mas desejou conservá-las para levar em Si próprio um magnífico símbolo de Seu poder contra o demônio.

Obstáculo à divina cólera

Ademais, quis beneficiar-nos junto ao Pai. A conservação dessas cicatrizes é-nos de fundamental importância, pois constituem elas um poderoso obstáculo a que a santa e divina cólera desabe sobre nós, devido às nossas culpas.

“Com esse detalhe, Ele os robustece na Fé e estimula à devoção, pois, em vez de eliminar as feridas que por nós recebeu, preferiu levá-las para o Céu e apresentá-las a Deus Pai como resgate de nossa liberdade. Por isso, o Pai deu-Lhe um trono à Sua direita, abraçando os troféus de nossa salvação”.5

Na Terra, servia-Se Ele da palavra a fim de pedir ao Pai perdão para os carrascos: “Perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). No Céu, não necessita abrir os lábios para nos obter o beneplácito: suficiente é mostrar-Lhe Suas cicatrizes.

Prova de Seu ilimitado amor de Salvador

Os Santos Padres afirmam ter Nosso Senhor querido conservar as marcas dos tormentos sofridos por Ele, com vistas ao Juízo Final, para a confusão dos maus e alegria dos bons. Serão elas um símbolo de Sua infinita misericórdia, prova de Seu ilimitado amor de Salvador, desprezado, renegado e ultrajado por alguns, e fonte inesgotável de bênçãos e graças para outros, objeto de ação de graças e adoração por toda a eternidade.

Confusão para uns, júbilo para outros. Naquele dia, dies iræ, todas as criaturas humanas verão as chagas dEle; portanto, também eu poderei adorá-las e nelas me alegrar, se tiver andado pelos caminhos da virtude, da graça e da santidade.

Através desse meio, Jesus fortificava a Fé dos Apóstolos, eliminando qualquer pretexto para a incredulidade, ou até mesmo para uma simples dúvida, tornando-os verdadeiras testemunhas, pelos séculos afora. Manifesta, ademais, seu amor por eles e, em consequência, também por nós, proporcionando-nos um poderoso estímulo para retribuirmos Seu incomensurável afeto, pela disposição de a Ele nos entregarmos inteiramente.

Ali, naquelas santas chagas, encontramos uma excelente âncora para a nossa confiança. Elas como que nos dizem: “Não temais, Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33). Vivamos o conselho dado por São Paulo: “Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa Fé, Jesus. Em vez de gozo que Se lhe oferecera, Ele suportou a Cruz e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12, 1-2).

Incutem-lhes forças para aceitar os suplícios

4Não podemos descartar a hipótese de que Jesus quis fazer os Apóstolos apalparem Suas santas chagas para facilitar-lhes a paciência que deveriam praticar, face às imensas dificuldades que sobre eles adviriam, na difusão do Evangelho, de parte dos tiranos, gentios e dos seus próprios conacionais. Os sagrados estigmas, ora glorificados, incutiam-lhes forças para aceitar com resignação, fortaleza e ânimo todos os suplícios a eles reservados.

Dessa forma, também nós, na adoração a essas chagas, somos estimulados a, com calma, serenidade e paz, suportar as adversidades tão comuns à nossa passagem por este vale de lágrimas. Quando algo desagradável, doloroso ou dramático vier atravessar nossa caminhada, adoremos as marcas dos tormentos aceitos pelo Salvador em nosso benefício, e saibamos, em algo, retribuir tão incomensurável misericórdia. E, no Céu, teremos inegável alegria em considerar as chagas que nos obtiveram a salvação eterna: “Vosso coração se alegrará e ninguém tirará vossa alegria” (Jo 16, 22).

Os Apóstolos as viram e apalparam

Teriam os Apóstolos tocado as Chagas de Jesus? Sim, tal qual fez São Tomé. Oh felix culpa! Autores de peso são de parecer que os Apóstolos contaram-lhe a graça de terem posto o dedo na chaga de Jesus, e daí seu famoso dito (Jo 20, 25).

“Não só os convidara a ver e apalpar, mas mostrou-lhes Seus pés e mãos. Não parece, pois, crível que eles deixassem de tocá-Lo, curiosos como estavam de conhecê-Lo. Além disso, se não O tivessem tocado, seria pelo fato de acreditarem, sem necessidade dessa prova; consta, porém que não creram somente por vê-Lo, como se diz em seguida”.6

Essa reação dos Apóstolos pareceria, à primeira vista, ocasionada por pura incredulidade, mas bem poderia ser o fruto de tal inebriamento que mais se julgavam em estado de sonho do que de realidade. Estavam penetrados de tão grande júbilo por vê-Lo ressuscitado, que não podiam crer no que os próprios olhos lhes mostravam.

“O Evangelista escreve isso como sendo uma atenuante para a falta dos discípulos em não acreditar, insinuando que, se eles não creram, foi mais pelo desejo da verdade do que por obstinação contra a verdade. Às vezes nos acontece de não acreditar naquilo que mais desejamos, como sucedeu a Jacó, quando lhe contaram que seu filho José estava vivo; e com São Pedro, ao ser libertado do cárcere contra todas as suas expectativas: julgava ser um sonho, e não realidade, o que se passava com ele. […]

“Tomando-se ao pé da letra o que aqui está dito (que eles não acreditavam), não se deve estender essa descrença a todos quantos se encontravam no Cenáculo, pois pelo menos aqueles que disseram ter visto o Senhor — como São Pedro e talvez algum outro — certamente criam”.7

Jesus come
para fortalecer-lhes a Fé

41 “Mas, estando eles, por causa da alegria, ainda sem querer acreditar e estupefatos, disse-lhes: 42 ‘Tendes alguma coisa que se coma?’ Eles apresentaram-Lhe uma posta de peixe assado. 43 Tendo-o tomado, comeu-o à vista deles”.

Uma prova evidente de estar Jesus entre eles, em corpo e alma, não sendo, portanto, um fantasma, era o fato de Ele comer diante de todos. Esta é uma explicação unânime entre os comentaristas; porém, parece ser também que Jesus desejava manifestar de modo especial Sua estima por eles, aceitando algum alimento que Lhe pudessem oferecer.

Sendo glorioso Seu Sagrado Corpo, não tinha Ele nenhuma necessidade de alimentar-Se; entretanto, por pura caridade e divina didática, deseja auxiliá-los, fortalecendo-lhes a virtude da Fé ao comer “à vista deles”. É o que a esse respeito comenta São Cirilo de Alexandria: “Para fortalecer mais ainda sua fé na Ressurreição, pediu-lhes algo para comer. Tratava-se de um pedaço de peixe assado, que Jesus tomou e comeu na presença deles. Não fez isso senão para mostrar com clareza que era Ele mesmo, ressuscitado, Ele que — como antes e durante todo o tempo de Sua Encarnação — comia e bebia com eles”.8

Abriu-lhes o entendimento e o coração

44 “Depois disse-lhes: ‘Isto é o que Eu vos dizia quando ainda estava convosco; que era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’”.

É interessante notar a diferença apontada por Jesus  — “quando ainda estava convosco” — entre Seu corpo padecente e, agora, glorioso. No primeiro caso, segundo Ele mesmo afirma, encontrava-Se em meio aos Apóstolos porque as Suas condições físicas possuíam as mesmas características que as dos outros. Após a Ressurreição, porém, já não mais Se acha entre eles, por não estar em carne mortal.

A Lei de Moisés, os Profetas e os Salmos correspondem à divisão das Sagradas Escrituras, conforme o costume hebraico: o Pentateuco, os Profetas e os livros poéticos; entre estes últimos, os Salmos.

45 “Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras”.

Face aos acontecimentos tão grandiosos verificados naqueles últimos dias, as revelações feitas anteriormente pelo Divino Mestre retornavam à memória dos Apóstolos com mais colorido e contornos mais definidos. “Quando seus pensamentos se amainaram pelo que Jesus dissera — pois O haviam tocado e Ele tinha comido —, o Senhor abriu-lhes o entendimento para compreenderem ter sido necessário que Ele sofresse cravado na Cruz. Move, portanto, Seus discípulos a recordarem o que lhes havia dito, isto é, que já lhes tinha anunciado Sua Paixão na Cruz, da qual antecipadamente falaram os profetas. Abre-lhes, ademais, os olhos da mente, para que compreendam as antigas profecias”.9

Precisaram eles de um especial auxílio da graça, para entenderem as revelações. “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5), afirmara Nosso Senhor. É necessário que o próprio Cristo Jesus nos ajude a interpretar as Sagradas Escrituras: “…o qual ensine como a realidade se ajusta à profecia; mais ainda, nem isto nos basta, é preciso que Ele nos abra os olhos da mente para podermos vê-Lo. É este o sentido próprio da frase grega: ‘Abriu-lhes então as mentes, para que pudessem entender as Escrituras’. Como observa muito bem São Beda, ‘apresentou Seu corpo para ser visto com os olhos e apalpado com as mãos pelos discípulos. Isto não basta: recordou-lhes as Escrituras. Ainda não é suficiente: abriu-lhes as mentes para que entendam o que leem’”.10

46 “E disse-lhes: ‘Assim está escrito que o Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia’ …”.

São inúmeras as profecias a esse respeito, e certamente eram muito conhecidas pelos Apóstolos. Sobre essa matéria, é riquíssimo o caudal de comentários surgidos da pluma dos Doutores e Padres da Igreja.

III – Jesus continua operando
por meio de Seus ministros

47 “…‘e que em Seu nome havia de ser pregado o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas dessas coisas’”.

Encerra-se o Evangelho deste III Domingo da Páscoa com o esclarecimento formal e categórico da parte de Jesus aos Apóstolos, a respeito da missão que lhes outorgava. Aproveita essa ocasião para conversar sobre o mais importante tema para eles e, portanto, para a Santa Igreja nascente. Tratava-se de assumirem a mesma missão de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Este permaneceria no mundo por meio deles.

Nada deveria ser olvidado: nem a Paixão com seus méritos, nem a própria vida do Divino Mestre, com Seus ensinamentos. Concretiza-se, nessa ocasião, uma identidade de missão entre Jesus e os Apóstolos. Aliás, na oração dirigida ao Pai, na Última Ceia, havia já Ele revelado essa aproximação: “Eu lhes transmiti as palavras que Me confiaste e eles as receberam e reconheceram verdadeiramente que saí de Ti, e creram que Me enviaste. Dei-lhes a Tua palavra, mas o mundo os odeia, porque eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo” (Jo 17, 8.14.18).

Anteriormente, chegara mesmo a afirmar: “Quem vos ouve, a Mim ouve, quem vos rejeita, a Mim rejeita, e quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me enviou” (Lc 10, 16).

Por isso São Paulo diria mais tarde, em tom de plena certeza: “O apóstolo é ministro de Cristo” (I Cor 4, 1); e “Deus mesmo é que fala por seus lábios” (II Cor 5, 20). Os discípulos deverão pregar e implantar a Igreja em todas as partes, com a mesma autoridade divina com que Cristo realizou Sua missão no mundo, tal como nos relata São Mateus: “Tudo o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu; e tudo o que desligardes sobre a Terra, será desligado no Céu” (18, 18). E São Marcos: “Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda criatura” (16, 15).

Cristo os constituiu sacerdotes da Igreja, para salvação e santificação das almas, fazendo-os herdeiros e participantes de Seu sumo e eterno sacerdócio. Esta missão continua ainda nos dias atuais e deverá perdurar até o fim dos tempos, através do ministério sacerdotal. Tal como Jesus, o presbítero dá “glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens objeto da boa vontade de Deus” (Lc 2, 14). É ele alter Christus: “Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio” (Jo 20, 21). Assim, a obra universal de redenção e de transformação do mundo trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo, com toda a sua divina eficácia, Ele continua a operá-la, e continuará sempre, por meio de seus ministros.11

(Comentário ao Evangelho (Lc 24, 35-48) da III semana as páscoa publicado na Revista Arautos do Evangelho, n. 88. Abril de 2009).

1 Suma Teológica II-II, q. 29, a. 3 ad 1.

2 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – II Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, p. 817.

3 Cf. idem, ibidem.

4 PETRARCHA, Franciscus. De remediis utriusque fortunæ. l. 2, 77.

5 AMBROSIUS MEDIOLANENSIS, Sanctus. Expositio Evangelii Secundum Lucam, l. 10 (PL 15:1.846).

6 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 820.

7 Idem, ibidem.

8 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Explanatio in Lucæ Evangelium, 24, 38 (PG 72, 948).

9 Idem, in Lc. 24, 45 (PG 72, 949).

10 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 826-827.

11 Cf. PIO XI. Encíclica Ad catholici sacerdotii, 20/12/1935, n.12.