José Antonio Dominguez – Professor do IFAT
Fabiano era um devoto cristão daqueles primeiros séculos, nos quais testemunhar publicamente o nome de Jesus significava pôr em risco a própria vida. Não havia muito que o Papa fora martirizado. “O pontificado de Antero — afirma Eusébio de Cesaréia — tinha durado apenas um mês” 1. E Fabiano, como todos os fiéis, aguardava ansioso a eleição do novo pontífice.
Assim que as circunstâncias o permitiram, o clero e o povo cristão de Roma se reuniram em algum dos locais de culto, talvez uma dependência das catacumbas, e procederam à eleição. Procuravam empenhadamente chegar a um consenso em torno do candidato mais idôneo. As preferências se inclinavam para aqueles de origem nobre e influente. No entanto, não havia meio de chegarem a um acordo.
Do anonimato à notoriedade
Naquele dia, Fabiano voltava do campo, com alguns amigos. No caminho, sentiu um desejo intenso de saber quem seria o novo Papa. Mera curiosidade? Inspiração do Espírito Santo? E ele, movido por esse misterioso impulso, entrou no local onde transcorria a eleição.
Podemos imaginar que tenha ido logo procurar seus conhecidos para se informar das últimas novidades. Talvez algum dos candidatos fosse seu amigo ou parente…
Porém, Fabiano, ao transpor o umbral do lugar onde se desenrolava esse acontecimento histórico, estava bem convicto de que na escolha de um Papa há sempre um eleitor invisível, o qual tem a última palavra, independentemente das intenções humanas que possam interferir naquele ato: o Divino Espírito Santo.
Dessa vez, o Grande Eleitor havia decidido intervir de modo visível.
Enquanto Fabiano se esgueirava por entre a assistência para se aproximar do centro da cena onde se desenrolavam os debates, uma pomba entrou por uma janela do recinto, esvoaçou elegantemente sobre os circunstantes e pousou suavemente sobre a sua cabeça: o Espírito Santo o havia escolhido! A assembléia, presenciando o fato, logo irrompeu numa grande aclamação de júbilo diante de um sinal tão notório da Providência: “Ele é digno! Ele é digno! E apesar da resistência de Fabiano, cercaram-no e o fizeram sentar-se no trono pontifício”, relata Eusébio de Cesaréia 2.
O escolhido pela pomba na origem do Colégio Cardinalício
São Fabiano governou a Igreja durante 14 anos, tendo coroado seu pontificado com o martírio, sob o imperador Décio, a 20 de janeiro de 250.
Entre as medidas inovadoras tomadas por esse Papa, destaca-se a nomeação de um diácono para cada uma das sete regiões de Roma, a fim de dar assistência aos pobres, assim como sete subdiáconos para dirigir os notarii, encarregados de redigir as atas dos mártires. Esses diáconos regionais são os antepassados remotos de uma das ordens em que se divide o Colégio Cardinalício: os cardeais-diáconos. E não deixa de ser singular o fato de ter sido um Papa escolhido por uma “pomba” quem lançou os fundamentos da instituição que, séculos mais tarde, teria como principal função a eleição do sumo pontífice.
Origem do Sacro Colégio
O Colégio Cardinalício originou-se “no Presbyterium ou senado sacerdotal que rodeava o Bispo de Roma, assim como os demais bispos dos primeiros séculos. A partir do século VI, os presbíteros dos 25 títulos ou igrejas paroquiais de Roma recebem o nome de praesbyteri cardinales (de cardo, gonzo), porque eram como que os gonzos ou eixo dessas igrejas. Incardinatus ou cardinalis, era costume dizer-se do clérigo incorporado estavelmente a uma igreja, para estabelecer a diferença com o que estava vinculado temporariamente. Depois foram chamados diaconi cardinales os diáconos regionais, encarregados desde tempos remotos de socorrer os pobres das sete regiões de Roma (mais tarde foram quatorze), e ocupados também em assistir o Papa, tanto nos ofícios divinos, como na administração. A esses quatorze diáconos se somaram quatro diaconi palatini, que serviam o pontífice no seu palácio. Havia ainda sete bispos suburbicários que acompanhavam o Papa nas funções litúrgicas: de Óstia, Porto, Albano, Santa Rufina ou Silva Cândida, Sabina, Túsculo ou Frascati, e Preneste ou Palestrina. Esses sete bispos, desde Estevão II (769), oficiavam por turno (episcopi cardinales hebdomadarii) na Basílica de Latrão. No século XI, havia no total 53 cardeais” 3.
Com o decorrer dos séculos, a sua autoridade e prestígio foram crescendo notavelmente, pois, era também entre os cardeais que os Papas costumavam escolher os legados pontifícios.
Vicissitudes do Papado
A partir do século VI, as eleições dos Papas começaram a sofrer ingerências dos príncipes, que prejudicaram muito a Igreja. “Os reis arianos e ostrogodos da Itália arrogaram-se o direito de aprovação [do Papa eleito]. Os imperadores gregos de Constantinopla, tornados senhores da Itália, continuaram os abusos dos arianos e dos ostrogodos. No começo do século IX, os reis dos Francos tornaram-se, pela autoridade da Igreja, imperadores do Ocidente, recebendo o direito e o dever de zelar para que a eleição do Papa fosse livre. Após a segunda metade do século X, os reis da Germânia, tendo recebido dos Papas a dignidade imperial, receberam também o mesmo privilégio, com a mesma obrigação. O primeiro desses imperadores alemães, Oton I, abusou desse privilégio, contra o próprio Papa que lho havia conferido” 4.
No decorrer do século XI, a crescente influência dos monges de Cluny levou a empreender uma salutar reforma da Igreja, cujo principal expoente foi o Papa São Gregório VII. Já antes de ascender ao Sólio Pontifício, o humilde monge Hildebrando exercia uma notável influência na Cúria Romana, trabalhando incansavelmente para coibir os abusos de sua época. Entre eles estava a ingerência dos príncipes na escolha do Papa.
Papel decisivo do Colégio Cardinalício
Foi Estêvão IX que pela primeira vez confiou a eleição do sucessor de Pedro aos Cardeais. Tendo de ausentar-se de Roma, e talvez pressentindo sua próxima morte, “convocou os cardeais, bispos, padres, diáconos e falou-lhes nestes termos: ‘Eu sei, irmãos, que após minha morte surgirão entre vós homens orgulhosos e ambiciosos que forçarão a porta do redil, procurarão apoio nos poderes laicos e desprezarão as regras santas publicadas pelos Padres, invadindo a Sé Apostólica’. […] Todos sem exceção prometeram ao Papa obedecer às suas instruções. E cada um deles foi colocar as mãos entre as do pontífice, jurando não permitir que fosse eleito um Papa sem o consentimento unânime e uma livre escolha realizada por todos os membros do Colégio Cardinalício” 5.
Tranqüilizado pelas garantias dadas pelo clero de Roma, Estêvão IX partiu em viagem, mas em Florença foi acometido por uma súbita doença que o levou deste mundo. São Hugo, de Cluny, que acompanhava o pontífice na viagem, o assistiu nos últimos instantes.
Usurpação da Cátedra de Pedro
A notícia da morte de Estêvão IX detonou novas explosões de ambição dos príncipes temporais. Gregório, conde de Tusculum, aliado a outros senhores das proximidades de Roma, logo tentou impor o seu candidato. “Os conjurados penetraram de noite na cidade de Roma, que ficou presa do seu furor. No meio de um grande tumulto invadiram a Basílica de Latrão e proclamaram Papa o bispo João de Velletri, com o nome de Bento X. Pedro Damião, esse herói da fé e da disciplina eclesiástica, que acabava se ser promovido à sede de Óstia, acorreu com os cardeais a fim de protestarem contra essa horrível violência. Porém, os soldados precipitaram-se sobre eles, de espada em punho, para massacrá-los. Os cardeais, protegidos por alguns servidores fiéis, conseguiram sair da Basílica por uma porta secreta e abandonaram Roma” 6.
Primeira eleição realizada pelo Sacro Colégio
Por essa ocasião, o cardeal Hildebrando (futuro São Gregório VII) regressava de uma viagem à Alemanha. Ao saber da eleição, contra a proibição expressa do Papa Estêvão IX, deteve-se em Florença, a fim de organizar a eleição legítima, de acordo com o juramento feito anteriormente pelos cardeais.
Em Siena, Hildebrando propôs ao sólio pontifício o bispo de Florença, Gerardo, que foi eleito por unanimidade pelos cardeais, tomando o nome de Nicolau II. “No mês de janeiro de 1059 o Papa Nicolau foi recebido em Roma pelo clero e pelo povo com as devidas honras, sendo entronizado pelos cardeais e tomando posse da Santa Sé, segundo o costume” 7. Alguns dias depois, o antipapa Bento apresentou-se diante de Nicolau II, a fim de reconciliar-se com a Igreja, e assim normalizou-se a situação.
Embora o pontificado de Nicolau II tenha sido muito curto — apenas dois anos — marcou definitivamente a história da Igreja, ao instituir para todo o sempre, no Concílio de Latrão, em abril de 1059, que a eleição papal ficava reservada aos cardeais, isentando-a, assim, de ingerências e das ambições dos príncipes temporais:
“Decidimos — determina o decreto de Nicolau II — que, por morte do Soberano Pontífice da Igreja romana e universal, os cardeais-bispos regulem com o maior cuidado a questão do seu sucessor. Depois recorrerão aos cardeais-clérigos, ao restante do clero e ao povo, a fim de obterem o seu consentimento para a nova eleição. Que façam recair a sua escolha de preferência no seio da Igreja romana, se nela encontrarem um homem capaz; caso contrário, busquem-no em outra igreja” 8.
Com o decorrer dos séculos, os cardeais foram assumindo cada vez mais encargos na Cúria Romana, auxiliando, assim, o Papa no governo da Igreja. Um deles, por exemplo, é o do Tribunal da Penitenciaria Apostólica, que regula a concessão de indulgências e as matérias concernentes ao foro interno. “A origem deste tribunal deve ser procurada no século XII, quando a absolvição de certos delitos mais graves foi reservada ao Romano Pontífice. Sendo muitos os que acorriam em peregrinação a Roma para alcançar o perdão de seus pecados, ou enviavam seus pedidos por escrito, apresentando casos de consciência, decidiu o Papa delegar suas faculdades a um cardeal (paenitentiarius maior), o qual, desde o século XIII aparece estavelmente com o poder de absolver pecados e censuras, dispensar de irregularidades e impedimentos, comutar votos, etc. Tinha às suas ordens um regente da Penitenciaria, um consultor canonista, vários auditores para examinar as causas, além de outros oficiais inferiores (scriptores, distributores, correctores, sigillatores)” 9.
Modernização da Cúria Romana
No século XVI, Sisto V, em seu curto, mas profícuo pontificado, limitou a 70 o número de cardeais, mas promoveu ao mesmo tempo uma inovadora reforma da Cúria Romana, dividindo a administração da Igreja em quinze Congregações, dirigidas por cardeais. Essa estrutura, com as adaptações necessárias aos novos tempos, permanece essencialmente a mesma até hoje, demonstrando sua grande eficácia.
Atualmente, segundo a constituição apostólica Universi Dominici Gregis, de João Paulo II, os cardeais eleitores não devem ultrapassar o número de 120, e exercem o direito de voto até completarem oitenta anos de idade.
Das remotas eras em que uma pomba indicava aos fiéis o escolhido por Deus para governar a Igreja, até nossos dias, o Espírito Santo foi conduzindo com Seu sopro divino os acontecimentos, de forma a dar à Igreja sua bela fisionomia, como a descreve São Paulo, “toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27).
“A carreira do Paraíso”
A criação de novos cardeais, como há pouco ocorreu, no Consistório de 24 de novembro, traz sempre à mente de todos a honrosa dignidade desse cargo eclesiástico, ficando por vezes num segundo plano outros aspectos não menos importantes de tão alta função.
Merecem, por isso, ser aqui mencionadas a título de conclusão as palavras de Dom Angelo Comastri, Cardeal Arcipreste da Basílica de São Pedro, à Radio Vaticano, nas quais o ilustre purpurado deixa transparecer o verdadeiro e sublime sentido do cardinalato:
“O cardinalato não modifica a vida, o cardinalato compromete a dar mais, compromete — se assim se pode dizer — a um heroísmo maior no viver a fidelidade à própria vocação. […] Não existem ‘carreiras’ na Igreja, mas existem chamados ao serviço. A única carreira na Igreja é a carreira ao Paraíso. Se não se chega lá, então se faliu, porque a finalidade da vida é alcançar o Paraíso. Tudo o mais é unicamente um chamado ao serviço: chamado a viver pelo Evangelho, porque é o bem único da vida; chamado a servir Jesus, porque é a nossa única esperança; chamado a anunciar ao mundo que há um só Salvador. Também o cardinalato serve para isso e somente para isso.”
1) CESARÉIA, Eusébio apud Darras, J.-E. Histoire Générale de L’Église. Paris: Louis Vives, 1876, t. 8, p. 116.
2) Idem, ibidem, p. 116.
3) LLORCA S.I, Bernardino. História de la Iglesia Católica. Madrid: BAC, 1953, t. II, p. 176.
4) ROHRBACHER. Histoire Universelle de L’Église Catholique. Lyon: Librairie Ecclesiastique de Briday, 1872, t. 6, p. 111.
5) Darras, J.-E. Histoire Générale de L’Église. Paris: Louis Vives, 1876, t. 21, p. 293.
6) Idem, ibidem, pp. 295-296.
7) Cf. ROHRBACHER. Histoire Universelle de L’Église Catholique. Lyon
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