Ao nos depararmos com o Antigo Testamento, ficamos deslumbrados com a grandeza e com a proximidade com que Deus fala com os homens sobretudo com o povo Hebreu. É Deus que toma a iniciativa de entrar em contato, e apesar de suas contínuas infidelidades, não o abandona, pelo contrário, ama-o mais, enviando a este povo os seus profetas, os quais falavam em nome do próprio Deus.

Quantos milagres, quanta grandeza, quanta intimidade! Terá isso se encerrado com a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, aquele que não quer o poder temporal, aquele que diz que não veio para ser servido, mas para servir?

Para uma pessoa que não tem profundidade de horizontes, poderia surgir a idéia de que com a vinda Nosso Senhor Jesus Cristo e a fundação da Igreja, a época dos grandes milagres e da comunicação face a face com Deus, haverá cessado. Esta visão é verdadeiramente superficial, pois tudo o que ocorreu no Antigo testamento não foi senão uma pré-figura, e uma imagem daquilo que viria. E todas essas pré-figuras se cumpriram na Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e na instituição por Ele fundada, isto é, a Igreja.

O presente trabalho visará mostrar apenas um pequeno aspecto de apenas uma das inúmeras pré-figuras que se realizam inteiramente na Pessoa do Divino Mestre. Trata-se de Melquisedeque.

1. A história

A fim de nos localizarmos na história, façamos uma leitura de como aparece na Sagrada Escritura a figura de Melquisedeque:

Melquisedeque recebe a oferta de Abrão e o abençoa

“Voltando Abrão da derrota de Codorlaomor e seus reis aliados, o rei de Sodoma saiu-lhe ao encontro no vale de Savé, que é o vale do rei. Melquisedeque, rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, mandou trazer pão e vinho, e abençoou Abrão, dizendo: ‘Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, que criou o céu e terra! Bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos em tuas mãos!’” (Gn14, 17 – 20).

Como vemos tal relato é um dos mais misteriosos do Antigo Testamento. A figura de um rei-sacerdote vindo de Salém, que nunca mais aparecerá na Sagrada Escritura, acende nossa curiosidade, e provoca o desejo de procurarmos saber melhor o pouco que podemos a respeito desse rei de Salém.

O primeiro dado que nos oferece o Gênesis, é ser Melquisedeque o rei de uma terra chamada Salém. A tradição judaica sempre identificou Salém com Jerusalém, como vemos no Salmo 76, 3, uma identificação de Salém com Sião, a qual é a antiga colina chamada Jerusalém.

Colunga e Garcia Cordero nos explicam que, o Yerusalayim hebraico, poderia tirar o argumento acima mencionado – isto é, de ser Salém o diminutivo de Yerusalem – foi um massorético artificial, inventado pelos rabinos a fim de dar mais amplitude à cidade.

Com relação ao nome Melquisedeque, se trata de um nome cananeu como o de Adonisedec, rei de Jerusalém nos tempos de Josué (Js 10,1). Melquisedeque, como era costume entre os cananeus, era ao mesmo tempo Sacerdote e Rei.[1]

No texto bíblico é a primeira vez que aparece o nome Kohen, que quer dizer sacerdote. Melquisedeque, como corresponde a sua função sacerdotal, abençoa Abraão e dá graças a Deus por sua vitória. E Abraão em agradecimento e reconhecimento do sacerdócio de Melquisedeque, lhe oferece o dízimo. É de se destacar um comentário feito por Colunga e Garcia Cordero, a propósito desse trecho do Gênesis:

Este reconhecimento do sacerdócio de Melquisedeque por Abraão, é uma prova a mais da antiguidade da tradição sobre o encontro entre eles, pois não se concebe que um judeu zeloso posteriormente tenha fingido o seu grande patriarca humilhando-se ante um sacerdote cananeu, reconhecendo-o como sacerdote e oferecendo-lhe o dízimo.”[2]

O fato de termos tão poucos dados com relação a este trecho do Antigo Testamento levou a que os exegetas tirassem daí bastantes ensinamentos e alegorias, tendo a Carta de São Paulo aos Hebreus como o pináculo de tal procedimento. É o que veremos no próximo tópico, isto é, quais os ensinamentos que retiraram, São Paulo e outros doutores, a partir da figura de Melquisedeque.

2. A figura de Melquisedeque na carta de São Paulo aos Hebreus e em alguns doutores da Igreja

Em Hebreus capítulo 7, versículos um a três São Paulo afirma: “Este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu ao encontro de Abraão quando este regressava da derrota dos reis e o abençoou, ao qual Abraão ofereceu o dízimo de todos os seus despojos, é, conforme seu nome indica, primeiramente ‘rei de justiça’ e, depois, rei de Salém, isto é, ‘rei de paz’. Sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.”

2.1. Superioridade do Sacerdócio de Cristo

São Paulo busca por meio desta Carta mostrar a superioridade infinita entre o Sacerdócio de Nosso Senhor Jesus Cristo e o sacerdócio Levítico. Para tanto usará a figura misteriosa de Melquisedeque, fazendo meio de sua didática intencional como nos diz Casciaro:

“As singulares características de Melquisedeque fazem dele uma ‘figura’ ou ‘tipo’ de Cristo. As relações entre Cristo e Melquisedeque são expostas segundo as regras que seguiam os rabinos para explicar a Sagrada Escritura. Isto é particularmente evidente no caso da expressão ‘ao não ter nem pai, nem mãe, nem genealogia’ para indicar a eternidade de Melquisedeque. Parece muito lógico que o autor recorra à figura de Melquisedeque, já que a misteriosa menção em Gn 14, 18-20 e no Salmo 109, 4, tinha despertado há muito o interesse dos hebreus. Assim por exemplo, Filão de Alexandria entende que Melquisedeque representa alegoricamente a razão humana iluminada pela sabedoria divina. (cf. De legum alleforia, 3,49-82)

“Também a literatura apócrifa identificou Melquisedeque com diferentes personagens: com Sem, o filho primogênito de Noé ou com o filho de Nir, irmão do próprio Noé. Há um elemento comum na tradição judaica que coincide de modo singular com o ensino desta epístola: Melquisedeque pertence a um sacerdócio estabelecido por Deus numa época anterior a Moisés. O historiador judaico Flávio Josefo (anos 37-100 d.C.) fala de Melquisedeque como um ‘príncipe de Canaã’, fundador e grande sacerdote de Jerusalém.”[3]

Primeiramente São Paulo dá os dados positivos de Melquisedeque: Rei de Salém, Sacerdote do Deus Altíssimo, que se encontrou com Abraão. Porém já de início, com o intuito de levar a cabo o objetivo de sua carta, ressalta uma peculiar característica de Melquisedeque: “sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de seus dias, nem fim de sua vida.” (Hb 7,2)

É evidente que São Paulo não ignorava aqui, que Melquisedeque tivesse pai ou mãe, ou que não tivesse morrido. Entretanto quer ele salientar que, se tais pormenores foram omitidos no Gênesis, foi por permissão Divina, a fim de mais aproximar Melquisedeque do Filho de Deus.[4] A propósito desse trecho, comenta o Doutor Angélico:

“De fato, quando se diz ‘sem pai’, vem significado o nascimento de Cristo de uma Virgem, o que é feito sem pai. Mt 1,20: ‘Aquele que é gerado na lei vem do Espírito Santo’. Ora, aquilo que é próprio de Deus não deve ser atribuído às criaturas. Ora, é de Deus Pai apenas o ser pai de Cristo. Por isso no nascimento daquele que o pré-figurava não devia ter alguma menção do pai carnal.

“Igualmente, quanto à geração eterna diz-se: ‘sem mãe’. E isto para que não se entenda que esta geração é material, assim como a mãe dá ao filho a matéria, mas é espiritual, como o esplendor do sol. Anteriormente (Hb 1,3) havia dito: ‘É o esplendor da sua glória…’. […]

“‘Sem genealogia’. E na Escritura não vem indicada a sua genealogia por dois motivos: um, para assinalar que a geração de Cristo é inefável. Is 53, 8: ‘Quem poderá narrar a sua geração?’ O outro motivo é para assinalar que Cristo, que é introduzido como sacerdote, não pertence ao gênero Levítico nem à genealogia do Antigo Testamento. E esta é a intenção do Apostolo.

“Por isso se acrescenta: ‘sem principio dos dias nem fim de vida’. Ora, diz-se isso não por que Cristo não tenha nascido no tempo e não tenha morrido, mas por causa de sua geração eterna na qual é nascido sem início algum no tempo. Por isso se diz em Jo 1, 1: ‘No princípio era o Verbo’, isto é, desde qualquer tempo, o Verbo era primeiro, como explica Basílio. De fato ele foi antes de qualquer dia, pois por meio d’Ele foi feito o mundo, com o qual começaram os dias. Igualmente: ‘nem fim dos dias’: e isto é verdade com referência à Divindade, que é eterna. Mas também com relação à humanidade, por que essa não tem fim de vida, em quanto Cristo, ressuscitando dos mortos, já não morre mais, segundo Rm 6, 9. E mais a diante (Hb 13,8) se dirá: ‘Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre.’”[5]

2.2. Semelhanças de Melquisedeque com Cristo

É de fazer-se notar também que o Apóstolo afirma ser Melquisedeque semelhante a Nosso Senhor Jesus Cristo e não o contrário, mostrando assim o desejo de reafirmar a superioridade do arquétipo com relação ao tipo. Assim nos diz Turrado:

“Evidentemente, o autor da carta sabe muito bem que Melquisedeque teve pais, e que nasceu e que morreu; nem aqui trata de insinuar o contrário. Mas interessa fazer notar o silêncio da Escritura sobre esse particular; silêncio que não considera casual, senão disposto por Deus, para ‘assemelhá-lo’ a seu Filho, do que queria que fosse tipo ou figura. Assim o afirma resolutamente na frase final, que serve de conclusão a todo o trecho: ‘semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre’. E é de notar que não é Jesus Cristo semelhante a Melquisedeque, senão que é o personagem principal, do mesmo modo que o santuário terrestre estará assemelhado ao celeste.”[6]

Outro ensinamento que a Igreja recolhe da figura de Melquisedeque – sobretudo do trecho da Epístola de São Paulo aos Hebreus que afirma ser Melquisedeque sem pai, nem mãe, nem ter genealogia alguma – é sobre o estado sacerdotal, do qual provem uma inteira consagração, abandonando a família e as demais relações sociais. Assim nos ensina o documento sobre o sacerdócio do Concílio Vaticano II:

“A figura e a vida do que é chamado a ser ministro do culto ao único Deus verdadeiro fica trespassada por um halo e um destino de segregação que, de certo modo, o põe fora e por cima da comum história dos outros homens: sine patre, sine matre, sine genealogia, diz São Paulo da figura ao mesmo tempo arcana e profética de Melquisedeque.”[7]

2.3. Superioridade do Sacerdócio de Cristo sobre o levítico

A partir do versículo onze, o Apóstolo passa a tratar mais especificamente da superioridade do sacerdócio de Cristo em contraposição ao sacerdócio Levítico. Para isso faz uso do Salmo 109 ressaltando a afirmação de que Jesus Cristo tem um sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque, ou seja, seu ministério não vem de uma sucessão carnal.

“É um sacerdócio não ‘segundo a ordem de Aarão’, senão segundo a ordem de Melquisedeque. […] Quer, pois, dizer que é um sacerdócio semelhante, não ao de Aarão, senão ao de Melquisedeque ou, mais explicitamente, tipo Melquisedeque: que tem as características do de Melquisedeque.”[8]

2.4. Singularidade do nome Melquisedeque

Outra característica é a singularidade sobre o nome de Melquisedeque. Além do que já foi tratado no tópico anterior (a história), também se ressalta o significado de Melquisedeque (rei da Justiça), e por ser este mesmo rei da Justiça o rei de Salém que significa rei da paz. Assim se demonstra as duas principais características do reinado messiânico: um reinado de Justiça e Paz. De maneira magistral o Angélico Doutor nos explica:

“Ora, na Escritura se diz dele duas coisas: antes de tudo o nome, isto é Melquisedeque, que ‘traduzido significa rei de justiça’, e significa Cristo, que foi rei. Jr. 23,5: ‘E reinará e será sábio e exercerá o direito e a justiça sobre a terra.’ E não apenas vem chamado justo, mas também rei da justiça, pois se fez por nós a sabedoria e a justiça: 1 Cor 1,30.

“A outra coisa que é dita dele é a condição. Por isso se diz: ‘rei de Salém, isto é rei da paz.’ Isto se adiciona a Cristo. Ele de fato é a ‘nossa paz’, segundo Ef 2,14; Sl 71,7: ‘Despontará aos seus a justiça e abundancia de paz.’

“E com isso o Apóstolo começa a servir-se, na pregação, da interpretação dos nomes. E une muito oportunamente a justiça e a paz porque nenhum cria a paz senão aquele que observa a justiça. Is 32,17: ‘Será obra da justiça a paz’. Neste mundo os homens são governados pela justiça, mas naquele futuro pela paz. Is 32,18: ‘O meu povo será assíduo na beleza da paz.’”[9]

2.5. Superioridade do Novo Testamento sobre o Antigo

Após termos visto a relação tipo–arquétipo existente entre Melquisedeque e Nosso Senhor, procuramos demonstrar a verdade que enunciamos na introdução do presente artigo, isto é, o Novo Testamento excede a perder de vista, em grandeza e santidade o Antigo Testamento.

É o que nos diz tão belamente O Apóstolo ao iniciar sua carta ao Hebreus, que foi utilizada como base para o presente trabalho: “Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas. Esplendor da glória (de Deus) e imagem do seu ser, sustenta o universo com o poder da sua palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus, tão superior aos anjos quanto excede deles o nome que herdou.” (Hb. 1,1-4)

Última Ceia, instituição do verdadeiro Sacrifício

Por Millon Barros


[1] Cf COLUNGA, Alberto, O.P. ; CORDERO, Maximiliano Garcia, O.P. Bíblia Comentada I – Texto de La Nácar-Colunga: Pentateuco. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960, p.187.

[2] Idem, p. 188.

[3] CASCIARO, José Maria et al. Biblia Sagrada. Braga: Edições Theologica, 1991, p. 383-384. Tomo III (Epístolas de São Paulo: Tessalonicenses, Pastorais, Epístolas aos Hebreus, Epístolas Católicas, Apocalipse).

[4]Essa é uma exegética comum no rabinato: o que não está na Thora, não existe no mundo (cf. Casciaro et al. 1991, p. 384 e 385).

[5] D’AQUINO, S. Tommaso; MONDIN, Battista. Commento al Corpus Paulinum (Expositio et lectura super epistolas Pauli Apostoli) – Vol. 6: Lettera Agli Ebrei. Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 2008. (Comentário a Epistola aos Hebreus, Cap. 7, Lição 1, n.333).

[6] TURRADO, Lorenzo; TURRADO, Lorenzo. Biblia Comentada VI: Hechos de los Apóstoles y Epístolas paulinas. Seccion Sagradas Escrituras. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1965.

[7] CASCIARO, José Maria et al. Biblia Sagrada. Braga: Edições Theologica, 1991, p. 386. Tomo III (Epístolas de São Paulo: Tessalonicenses, Pastorais, Epístolas aos Hebreus, Epístolas Católicas, Apocalipse).

[8] TURRADO, Lorenzo; TURRADO, Lorenzo. Biblia Comentada VI: Hechos de los Apóstoles y Epístolas paulinas. Seccion Sagradas Escrituras. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1965, p. 485.

[9] D’AQUINO, S. Tommaso; MONDIN, Battista. Commento al Corpus Paulinum (Expositio et lectura super epistolas Pauli Apostoli) – Vol. 6: Lettera Agli Ebrei. Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 2008. (Comentário a Epistola aos Hebreus, Cap. 7, Lição 1, n.333).