Magnífico retábulo de prata, ouro, esmaltes e pedras preciosas, a “Pala d’Oro” simboliza todo o orbe criado: o mundo terrestre e o celeste, unidos pela representação de um elo que são os Santos e os Anjos.

Quando as guerras forçam as populações a fugas precipitadas, geralmente originam caos e miséria. Povos e raças chegam a desaparecer. Inclusive da memória da História.

Em outras ocasiões, homens e mulheres de têmpera desenvolvem, no infortúnio, vitalidades novas. Surgem maravilhas que enchem de admiração, durante séculos, quem ama a formosura e o heroísmo. É o caso de Veneza.

A Roma imperial, vencedora em todas as latitudes então conhecidas, “involuiu”, arrastada por suas próprias raízes pagãs. A desagregação, amplificada pelas invasões dos bárbaros, desajustou os restos do dominium.

No norte da Itália, povos abandonados à sua sorte deixaram campinas férteis, buscando refúgio em salobras marismas junto ao mar Adriático. Sobre inseguros bancos de areia, elevaram precárias casas de palafita. Nasceu assim a sereníssima República de Veneza. Hoje um dos lugares mais visitados do planeta.

Tenacidade, inteligência, agilidade e, sobretudo, Fé Católica ergueram sobre os pântanos uma civilização de palácios robustos, igrejas luminosas, ruas misteriosas, sinuosos canais onde vogam gôndolas aparentemente instáveis (como toda a urbe), que a sagacidade dos gondoleiros torna seguras como um transatlântico.

Entre os tesouros que alberga a cidade, um se destaca como o microcosmo da “venecianidade”: a Pala d’Oro, magnífico retábulo de prata, ouro, esmaltes e gemas sobre o altarmor da Basílica de São Marcos.

Elaborada em 1105, nos ateliês mais renomados de seu tempo, na Constantinopla bizantina, sofreu duas grandes modificações (1209 e 1345), até adquirir sua forma atual. São quase 2 mil pedras preciosas, e mais de 250 placas de finos esmaltes, sobre uma superfície superior a seis metros quadrados. Sem dúvida alguma, uma das maiores joias produzidas em toda a Cristandade.

Na concepção de seus anônimos idealizadores, a Pala simboliza todo o orbe criado: o mundo terrestre e o celeste, unidos pela representação desse elo que são os Santos (os quais, na glória eterna, não esquecem os que ainda peregrinamos nesta Terra) e os Anjos (especialmente chamados a proteger os homens).

Modificações posteriores fá-la-ão perder um pouco a unidade, mas aumentarão seu esplendor. Por exemplo, as pedras preciosas estarão engastadas de peculiar modo sobre pequenas placas unidas por lâminas vibráteis que o menor movimento do ar, ou a repercussão dos passos humanos, faz fulgurar. Esses cambiantes lampejos reforçam a ideia de que a realidade maravilhosa, metafísica e sobrenatural do universo encontra-se no mundo idealmente representado pelas hieráticas figuras, muito mais do que na simples análise científica dos objetos que nos rodeiam. Hoje, o vidro colocado para protegê-la nos impede de admirar esse detalhe.

A Pala d’Oro, quinta-essência desse monumento de Fé e engenho que é Veneza, testemunha a invencibilidade da virtude cristã ante as maiores adversidades.

Por José Manuel Jimenez

(Publicado na revista “Arautos do Evangelho”, n. 87, Março 2009)