Como Maria foi isenta do pecado original havendo a Igreja definido o dogma da Redenção Universal de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Desde os primeiros séculos do cristianismo, a Imaculada Conceição de Maria Santíssima foi venerada pela grande maioria dos cristãos e defendida por muitos Padres da Igreja, como São Justino, Santo Irineu, Santo Efrem e o próprio Santo Agostinho.
Séculos mais tarde, celebrava-se em várias Igrejas a festa da Imaculada Conceição, mais concretamente no Oriente a partir do século VIII, na Inglaterra desde o século XI e pouco depois divulgou-se pela Alemanha, França e Espanha.
Entretanto, entre os séculos XII e XIV, os principais autores da escolástica se encontraram diante de uma dificuldade muito difícil de resolver: como conciliar a Imaculada Conceição de Maria Santíssima com o dogma da Redenção Universal de Cristo? Em outras palavras, se Nossa Senhora foi isenta do pecado original desde o primeiro instante de sua concepção significaria que os méritos da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo não foram aplicados a Ela, e, por conseguinte, a Redenção não seria universal, pois haveria uma exceção, o que implicaria em negar o dogma, o que não é possível.[1]
Nesta controvérsia se encontrou a oposição de autores de muita importância, tais como São Bernardo, São Boaventura e o próprio São Tomás de Aquino, os quais, sem diminuir o mais mínimo a devoção a Maria, não conseguiram discernir de que maneira poderia aplicar-se a Redenção de Cristo obtida no alto do Calvário a Nossa Senhora. Segundo eles, se a Redenção é universal, tal como o afirma o dogma, era necessário afirmar e reconhecer que Maria, embora seja a mais perfeita das criaturas, na qual Deus esgotou sua imaginação – por dizer de alguma maneira – também foi concebida em pecado.
Posteriormente, com Guilherme de Ware e o Beato Duns Escoto, se conseguiu harmonizar o grande privilégio concedido por Deus à sua Mãe de ser concebida sem pecado e o dogma da Redenção Universal, surgindo o termo de “redenção preventiva”.
Assim, pois, segundo eles, há duas maneiras de redimir um cativo: tirá-lo do cativeiro no qual se encontra pagando por ele o preço de seu resgate (o que se denomina “redenção liberativa”); ou, antes dele cair no cativeiro, pagar o resgate antecipadamente. Esta é propriamente a “redenção preventiva”, a qual é ainda mais perfeita que a anterior. Desta maneira, chegaram à conclusão de que a aplicação dos méritos do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo a Maria Santíssima realizou-se em forma de redenção preventiva.[2]
Com efeito, Deus vendo desde toda a eternidade os infinitos méritos que Jesus Cristo conquistaria com sua Paixão, aplicou de forma antecipada o preço desse resgate à sua Mãe, que, por esse privilégio, foi isenta do pecado original.
Embora as referências bíblicas – o protoevangelho (Gen 3, 15) e a saudação do Anjo (Lc 1, 28) – não o digam de forma explícita, as razões teológicas delas deduzidas são irrefutáveis, pois como aceitar que a Rainha dos Anjos estivesse sob a tirania do demônio? Como Ela, a Medianeira da Reconciliação, pôde ter sido, por um só instante, inimiga de Deus? O Sangue Preciosíssimo de Nosso Senhor pode ter brotado de um manancial maculado? Pode se imaginar que Maria fosse, ao mesmo tempo, Mãe de Deus e escrava de Satanás? São perguntas que obrigavam a aceitar a redenção preventiva de Maria, e que certamente os grandes autores da escolástica, acima mencionados, teriam aceitado se a tivessem conhecido.
Finalmente, o Papa Pio IX, com a Bula “Ineffabilis Deus” de 8 de dezembro de 1854, declarou solenemente ao mundo inteiro que Maria Santíssima, por um especialíssimo desígnio de Deus, em virtude da maternidade Divina à qual foi predestinada, foi isenta do pecado original desde o primeiro instante de Sua Conceição.[3]
Este privilégio especialíssimo implica que, havendo Maria sido libertada da mancha do pecado original, é necessário afirmar que a Imaculada Conceição não foi apenas uma isenção, pois estando limpa e livre da maldição de nossos primeiros pais está em total amizade com Deus, ou seja, em Graça. Maria Santíssima foi concebida não só sem pecado, mas em Graça, e esta em grau altíssimo, pois corresponde à sua dignidade de Mãe de Deus.[4]
Longos séculos foram necessários para que a razão humana, tão pobre, encontrasse a maneira de conciliar a Imaculada Conceição de Nossa Senhora com o dogma da Redenção Universal de Jesus Cristo, a qual abrange a todos aqueles que descendem de Adão, sem exceção alguma, até a própria Mãe de Deus. A doutrina da redenção preventiva, chancelada pelo Bem-aventurado Papa Pio IX como meio de aplicação dos méritos infinitos do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor para a nossa salvação, é o sol que nos mostra a harmonia existente entre os dois dogmas.
Por Jaime Abbad Luengo (Estudante de Teologia no Instituto São Tomás de Aquino)
BIBLIOGRAFIA
DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS. Petrópolis: Vozes, 1953.
GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Mère du Sauveur et notre vie intérieure. Paris: Du Cerf, 1948.
ROYO-MARÍN, Antonio. La Virgen María: teología y espiritualidad marianas. 2.ed. Madrid: BAC, 1996,
[1] Cf. ROYO-MARÍN, Antonio. La Virgen María: teología y espiritualidad marianas. 2.ed. Madrid: BAC, 1996, p.72-73.
[2] Cf. Opus cit. p.74-75.
[3] PIO IX. Ineffabilis Deus: Bula, 8 dez. 1854. In: DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS. Petrópolis: Vozes, 1953. p. 3-23.
[4] Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Mère du Sauveur et notre vie intérieure. Paris: Du Cerf, 1948. p.37-38.
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