Marcos Eduardo Melo dos Santos

O que é mais belo contemplar: agrestes horizontes montanhosos com vegetação abundante, ou plácidas paisagens marítimas de alva areia, em harmonia com um límpido céu e o azul esverdeado das águas? A incomensurável vastidão do oceano, ou os recantos misteriosos das florestas, com suas aves de vivas cores e sussurrantes cachoeiras? A pergunta faz hesitar.1

Entretanto, tal alternativa não se põe naquelas áreas do litoral brasileiro onde a exuberante grandeza da serra oscula a imensidão do mar.

Numa dessas regiões costeiras, exatamente onde o Trópico de Capricórnio cruza a parte mais oriental do Brasil, situa-se a cidade de Ubatuba. O Parque Estadual da Serra do Mar muito concorre para o fascinante panorama do município, em cujo extenso território o caprichoso desenho do litoral forma oitenta encantadoras praias, com portos naturais adornados por aconchegantes ilhas.

O cenário, mais próprio à legenda do que à prosaica vida do século XXI, nos remonta à história dos primórdios do Brasil.

Um alemão nas selvas brasileiras

A crônica dessa cidade paulista, hoje com cerca de 80 mil habitantes, se inicia com a singular aventura de Hans Staden, um mestre em artilharia alemão capturado pelos tupinambás.

2Em perigo de ser morto e devorado num ritual canibalesco, conseguiu, por meio de muita astúcia, enternecer a rude índole aborígene e inclusive travar certa amizade com o cacique Cunhambebe, que dominava uma vasta região situada ao norte da atual Caraguatatuba. Quando Staden via acender-se nos silvícolas a sanha antropofágica, ameaçava-os com os castigos divinos, caso lhe fizessem algum mal, e prometia-lhes, da parte do bom Deus, um prêmio no Céu, se lhe poupassem a vida.

Como os tupinambás eram aliados dos franceses, que então ocupavam a Baía de Guanabara, o artilheiro germano fez-se passar por cidadão da França, em luta contra os portugueses. Após nove meses de incertezas e de angustiosas peripécias, conseguiu retornar à Alemanha e lá publicou, em 1557, sua “História verdadeira e descrição de um país habitado por homens selvagens, nus, ferozes e antropófagos situado no novo mundo denominado América”.1

Nessa obra, Staden descreve uma “aldeia com sete casas” onde ele ficara prisioneiro.2 Situada a trinta milhas da atual Bertioga, ele a chama de Uwattivi, que significa, segundo alguns estudiosos, “o lugar onde há muitas canoas”.

Iminência de um conflito geral

Décadas mais tarde, essa mesma aldeia, também conhecida pelo nome de Iperoig (“água que tem tubarões”), passaria a ser o cenário do lance talvez mais dramático da vida do Beato José de Anchieta.

Em meados do século XVI, os franceses disputavam aos portugueses a posse do território em torno da Baía de Guanabara, onde fundaram uma colônia à qual deram o nome de França Antártica. Além desses, os colonizadores lusos tinham outros inimigos: os tupinambás, coligados num formidável pacto guerreiro denominado Confederação dos Tamoios. Os franceses aliaram-se a eles, forneceram-lhes instrumentos bélicos, inclusive armas de fogo, e os instigavam no combate aos portugueses e seus aliados, os tupiniquins. A situação era tensa, e ambos os contendores preparavam-se para a iminência de um conflito generalizado.

Por seu turno, os missionários jesuítas, interessados em conquistar para a Fé cristã não só os tupiniquins, mas também os tupinambás e os demais povos indígenas, viam bem que seu trabalho de evangelização não poderia ser feito sem o estabelecimento de uma paz firme e duradoura. Dispuseram-se, pois, o padre Manuel da Nóbrega e o ainda jovem clérigo José de Anchieta à delicada e perigosa missão de intermediários numa proposta de paz aos chefes da Confederação dos Tamoios.

Dois missionários no meio dos indígenas

Assim, em maio de 1563, desembarcaram na praia de Iperoig esses dois doutos europeus, formados em famosas universidades ibéricas, homens de destaque nos meios intelectuais por sua erudição, e nos ambientes religiosos por sua virtude. Ali estavam para tratar de paz com selvagens acostumados a se banquetearem com as carnes dos inimigos. E não ignoravam que sua situação pessoal equivalia, na prática, à de prisioneiros… Somente o amor a Deus e ao próximo explica tanta abnegação.3

Graças à benevolência do chefe tamoio Coaquira (ou Pindobuçu), o padre Nóbrega pôde celebrar Missa numa rústica igrejinha, na presença de índios curiosos e reverentes. Anchieta ministrava-lhes, junto com a doutrina cristã, rudimentares conhecimentos de higiene e recato. Todavia, ainda não podia batizá-los, por causa da fragilidade de sua perseverança na Fé.

Sujeitaram-se ambos a se alimentar da comida dos silvícolas, a percorrer os árduos caminhos, sofrer frio, dormir ao relento. Em diversas oportunidades viram-se prestes a ser devorados nos rituais antropófagos. Cunhambebe, chefe da Confederação dos Tamoios, tentou matá-los várias vezes, e só não conseguiu realizar seu intento devido à proteção que seu próprio filho oferecia aos dois jesuítas. Numa dessas ocasiões de risco iminente, Anchieta viu-se na contingência de fugir pelas íngremes colinas de Ubatuba, carregando às costas o padre Nóbrega, então com grandes dificuldades de caminhar.

Apesar de tão adversas circunstâncias, os missionários ajudavam os indígenas em suas doenças, curavam-lhes as chagas e ferimentos, falavam-lhes de Deus, catequizavam as crianças, exercendo assim uma benéfica influência sobre eles, a ponto de vários já se mostrarem inclinados ao Cristianismo.

Um poema escrito na areia

Mais grave que os perigos físicos eram os riscos espirituais. Um mês e meio após a chegada dos dois jesuítas a Iperoig, o padre Nóbrega precisou retornar à vila de São Vicente, deixando Anchieta como refém. Ali permaneceu ele durante seis meses, sem o confortador apoio moral e espiritual do sacerdote.

A falta de senso moral, a completa nudez e a luxúria dos nativos, agravadas por provocadoras atitudes de certas índias, constituíam situações constrangedoras para o jovem religioso, disposto a manter a qualquer custo a fidelidade ao seu voto de castidade perfeita. Suas armas nessa luta eram austeras penitências, o uso de um cilício e, sobretudo, o recurso à maternal proteção da Santa Virgem das Virgens. Prometeu-Lhe Anchieta compor um poema em sua homenagem, para obter a graça de conservar ilibada a virtude angelical.

4No cumprimento dessa promessa, percorria ele a praia de Iperoig, compondo mentalmente os versos que em seguida escrevia na areia e por fim gravava na memória. Assim nasceu o Poema à Virgem, uma das primeiras peças literárias da cultura luso-brasileira, com 5.800 versos em latim. Conta-se que, enquanto escrevia as rimas na areia, uma avezinha de lindas cores pairava em seu redor, não hesitando inclusive em pousar-lhe sobre os ombros ou nas mãos.

A Paz de Iperoig

Graças ao tino diplomático, à heroica dedicação e, sobretudo, às orações dos dois santos jesuítas, estabeleceu-se afinal, sem tinta nem papel, o primeiro tratado de paz das Américas, entre os portugueses do litoral paulista e os aguerridos tamoios. Depois de um cerimonioso ritual indígena realizado diante do cruzeiro erguido em Iperoig, Anchieta foi autorizado a regressar a São Vicente, no dia 14 de setembro de 1563, festa da Exaltação da Santa Cruz. O próprio Cunhambebe — que de ferrenho inimigo se transformara em amigo e admirador — levou-o de volta em sua canoa.

Rompendo as suaves ondas marítimas na rústica embarcação do Grande Chefe, Anchieta “acariciava ainda, dentro da alma, a certeza de que, com a Paz de Iperoig, estava assegurada para breve a expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Não vingaria a colonização franco-calvinista, que dividiria ao meio a terra brasileira, e com isso estaria assegurada a integridade imensa de nossa pátria, pelo idioma, pela raça e pela fé” — afirma um estudioso da história de Ubatuba.3

De fato, a Paz de Iperoig foi um fato decisivo na história de uma nação que vai assumindo posição de importância no terceiro milênio. Sem ela não se formaria o Brasil enorme e uno, com uma só língua, uma só Fé, um povo miscigenado e sem vãos preconceitos.

Síntese do esplendor da nossa natureza

No local da legendária aldeia tupinambá formou-se aos poucos um povoado de colonizadores que prosperou e em 1637 foi elevado à categoria de vila, batizada com o sugestivo nome de Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba.

O Beato José de Anchieta nunca mais voltaria a ver aquele panorama no qual Deus reuniu as belezas do mar, a grandeza das montanhas, a fertilidade das florestas, o cristalino das cachoeiras, a exuberância da fauna e o pitoresco das ilhas.

Ubatuba sintetiza, em certo modo, o esplendor da natureza brasileira. Rico panorama no qual Aquele que morreu por nós na Santa Cruz quis que pairasse a bênção de heróis que, com seus sacrifícios e orações, garantiram a unidade do Brasil. ²

1 STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1930, p.186.

2 Idem, p.67.

3 OLIVEIRA, Washington de. Ubatuba – Documentário. São Paulo: Editora do Escritor, 1977, p.41.