Marcos Eduardo Melo dos Santos

01José, o filho mais amado de Jacó, foi vendido como escravo pelos próprios irmãos. Disseram estes ao pobre pai que uma fera havia comido aquele a quem a Providência havia mostrado sua predileção através de sonhos. A Bíblia descreve a dor de Jacó, o pai que amava o caçula prometido por Deus, dotado de tantos dons naturais e sobrenaturais. Após anos de separação, por causa de uma seca que assolou a Palestina, os irmãos do escravo José encontraram-se agora com o vice-rei do Egito.

A cena da autorrevelação de José aos seus irmãos é comovente. O escravo vendido pelos seus parentes havia se tornado o segundo homem do Egito e lhe cabia a missão de salvar a seus irmãos da miséria. O próprio José explicou a grandeza do acontecimento: “não fostes vós que me fizestes vir para aqui. Foi Deus. […] Premeditastes contra mim o mal: o desígnio de Deus aproveitou-o para o bem […] e um povo numeroso foi salvo” (Gn, 45, 8; 50, 20).02

Esta é uma das inumeráveis ações da Divina Providência. Quantas e quantas vezes vê-se na História da Salvação, que Deus em sua oni­potente Providência, pode tirar um bem consequente do mal, mesmo moral, causado pelas criaturas. Este atributo de Deus é ao mesmo tempo pervadido de grandeza e mistério. Por esta razão, São Paulo exclama: “Ó abismo de riqueza, de sabedoria e de ciência em Deus! Quão impenetráveis são os seus juízos e inexploráveis os seus caminhos!” (Rm 11,33). Ajoelhado diante desta magnitude, é natural que nos perguntemos: o que a doutrina Cristã ensina acerca da Providência Divina?

O que é a Divina Providência?

Ensina o Catecismo que “a divina Providência consiste nas disposições pelas quais Deus conduz, com sabedoria e amor, todas as criaturas, para o seu último fim”[1]. Toda a criação foi formada “em estado de caminho” para uma perfeição última destinada por Deus a todos os homens: a salvação eterna[2].

Chamamos Divina Providência às disposições pelas quais Deus conduz a sua criação em ordem a essa perfeição. O Concílio Vaticano I afirma que “Deus guarda e governa, pela sua Providência, tudo quanto criou, ‘atingindo com força de um extremo ao outro e dispondo tudo suavemente’ (Sb 8, 1). Porque ‘tudo está nu e patente a seus olhos’ (Hb 4, 13), mesmo aquilo que depende da futura ação livre das criaturas”.[3]

O que a Bíblia fala sobre a Providência de Deus?

Na Bíblia encontramos diversos testemunhos desta ação divina. Deus não deixa faltar o maná ao povo no deserto e cuida da viagem de Tobias (cf. Tb 2. 12-18). A solicitude da Divina Providência é concreta e imediata, abrange tudo, desde os mais insignificantes pormenores até os grandes acontecimentos da história do mundo. Os livros santos afirmam, com veemência, a soberania absoluta de Deus no decurso dos acontecimentos: “Tudo quanto Lhe aprouve, o nosso Deus o fez, no céu e na terra” (Sl 115, 3); “há muitos projetos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece” (Pr 19, 21).

Muitas vezes, vemos o Espírito Santo, o autor da Sagrada Escritura, atribuir a Deus certas ações, sem mencionar causas segundas: “Deus protege a viúva e o órfão”. Como estes, diversos são os exemplos na Bíblia. O Catecismo recorda que isso não é “uma maneira de dizer” primitiva, mas sim um modo profundo de afirmar o primado de Deus e seu senhorio absoluto sobre a história e sobre o mundo (Cf. Is 10, 5-15;45, 5-7;Dt 32, 39;Eclo 11,14). Desta forma, Deus nos ensina a ter confiança n’Ele. A oração dos Salmos é, aliás, a grande escola desta confiança (Cf. Sl 22; 32; 35; 103; 138).

03No Evangelho, Jesus nos convida a um abandono filial à Providência do Pai Celeste, que cuida das pequenas necessidades dos seus filhos: “Não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? Que havemos de beber? […] Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 31-33; Cf. Mt 10, 29-31; Mt 6,11).

O apóstolo São Pedro exorta aos primeiros cristãos: “Lançai sobre Deus toda a vossa inquietação porque Ele vela por vós” (1Pd5, 7; Cf. Sl 55, 23). Esta era a firme crença nos primórdios do Cristianismo como afirmavam diversos Padres da Igreja: Clemente de Alexandria[4], Orígenes e Santo Agostinho[5].

Existe o acaso?

Há diversas correntes de pensamento que negam a existência da Divina Providência. A primeira delas argumenta que a existência do acaso elimina a possibilidade de que Deus governe todos os acontecimentos. Segundo alguns autores, o mundo é regido pelas suas regras. O cair de uma folha, o cantar dos pássaros ou mesmo o existir de um animal na profundeza dos mares em nada é influenciado por Deus que não governa todos os aspectos da vida.

De fato, é preciso reconhecer que existem três tipos de acontecimentos: um é casual, totalmente neutro em ordem à nossa salvação. Não se pode encontrar razões a não ser na casualidade para fatos como alguém sentar ao meu lado no ônibus usando uma camisa de determinada cor. São acontecimentos realmente neutros, normais e aleatórios em nossa vida[6].

Entretanto, há também certos eventos em nosso cotidiano que derivam da liberdade ou da contingência humana. O filho estudar em determinado colégio, não é casual, deriva da vontade dos pais, que preveem e predeterminam algo em relação aos seus filhos. Orientam assim ocasiões para o bem de sua prole.

Todavia, de forma muito mais comum do que pensamos, inúmeros acontecimentos da vida correspondem a verdadeiros desígnios da Providência. Segundo o Divino Mestre, nenhum fio de cabelo cai de nossa cabeça sem Seu consentimento (cf. Lc 12,7).

Acrescenta-se ainda que Deus é a causalidade universal de todos os acontecimentos, mesmo dos casuais, Ele é o Senhor mesmo do acaso, pois é a origem primeira de toda a criação. Por esta razão, Deus conhece em sua Providência todas as coisas. De fato, providência deriva de pro, um prefixo grego, que significa antes, e de vidência, deriva do verbo latino videre, ver. Deus vê tudo com antecedência.

A Providência de Deus não predetermina os acontecimentos, mas permite e orienta as situações em ordem à nossa Salvação. Sendo Senhor das regras e leis da natureza, pode prever com insuperável e misteriosa ciência – a qual nossa razão humana não pode alcançar – detalhes mínimos da vida cotidiana para o bem das almas.

Conta-se que certa vez, uma senhora tentada de suicidar-se carregou um revólver a fim de cumprir seu triste objetivo. No momento em que ia desferir contra si o disparo, ouviu o toque da campainha da casa. Para atender aquele que seria seu último contato neste mundo, depositou a arma sobre a mesa e apenas viu um envelope de uma campanha católica. Ao abri-lo uma imagem da Virgem Maria a fez cair em si. Admirada, abandonou a ideia de suicídio e voltou à frequência da Igreja. O carteiro nem imaginava que a Providência Divina contava e seus passos a fim de salvar uma vida…

Frei Garrigou-Lagrange recorda que “por insondável que seja esta sabedoria divina não é obscura para nós, senão porque é demasiado luminosa em si mesma”[7]. A providência é uma consequência dos atributos da onisciência e da onipotência de Deus. A providência é ditada pela bondade generosa e misericordiosa de Deus. É pessoal; cuida com amor de cada homem; não é uma ação automática e mecânica. Deus a tudo sustenta. Se, hipoteticamente, esquecesse um momento de alguém, este voltaria ao nada, deixaria de existir.

A presciência de Deus quanto aos acontecimentos contingentes à vontade humana é um dogma definido pelo Concílio Vaticano I. A providência elimina o casual. Esta ideia é tão racional que mesmo certos povos antigos chegaram à conclusão da Providência Divina. Existe referência a este atributo divino em muitas religiões antigas e na filosofia grega.

A Providência Divina não limita a liberdade do homem?

Outra objeção contra a existência da Providência Divina está na liberdade do homem, pois se Deus soubesse nossas atitudes desde toda eternidade, significaria que elas são predeterminadas. Isto redundaria que conforme defenderam vários hereges, não possamos ter plena liberdade. Existem assim os predestinados à salvação ou à condenação eterna. A Igreja rejeita estes erros contrários à esperança e ao temor cristão, porque levam o homem ao desespero ou à presunção de sermos salvos.

É preciso observar ainda que há uma distinção entre providência e predeterminação. Se Deus determinasse todos os atos humanos, sua salvação ou perdição eterna, o homem não possuiria liberdade. Deus prevê as ações dos homens antes mesmo de criá-los. Isto não desdoura a perfeição da criação, mas glorifica seu Autor em razão da capacidade de criar seres livres ainda que sejam capazes de Lhe ofender[8].

Ora, Deus é o Senhor soberano dos seus planos. Mas, para a realização destes, serve-Se também do concurso das criaturas. Isto não é um sinal de fraqueza, mas da grandeza e bondade de Deus onipotente. É que Ele não só permite às suas criaturas que existam, mas confere-lhes a dignidade de agirem por si mesmas, de serem causa e princípio umas das outras e de cooperarem, assim, na realização do seu desígnio.

Ensina o Catecismo que, aos homens, Deus concede a participação na sua Providência, confiando-lhes desde o início do mundo a responsabilidade de “submeter” a terra e dominá-la (cf. Gn1, 26-28). Assim, concede-lhes que sejam causas inteligentes e livres para completar a obra da criação e aperfeiçoar a sua harmonia, para o seu bem e o dos seus semelhantes.

Entretanto, ainda que sejamos muitas vezes cooperadores inconscientes da vontade divina, podemos entrar deliberadamente no plano divino, através das obras de apostolado e das orações, como também pelos nossos sofrimentos (Cf. Cl 1,24). Tornamo-nos, então, plenamente “colaboradores de Deus” (1Cor 3, 9; Cf. 1Ts 3,2.) e do seu Reino (Cf. Cl  4,11)[9]. Assim, Deus é a causa primeira, que opera nas e pelas causas segundas: “É Deus que produz em nós o querer e o operar, segundo o seu beneplácito” (Fl2, 13; Cf. 1Cor 12, 6).

A Providência não pode evitar o mal e o sofrimento?

Narra Battista Mondin, que durante a II Guerra Mundial um soldado nórdico tomou à força o filho recém-nascido de uma prisioneira. Atirando-o ao chão, esmagou com o calcanhar a cabeça da criança diante da pobre mãe[10]. O fato é chocante. Por esta razão, certos autores se perguntam, por que não interviu Deus diante de tamanha crueldade? Enfim, por que Deus permite o mal sobre a Terra?

O Catecismo ensina que a esta questão, “tão premente como inevitável, tão dolorosa como misteriosa, não é possível dar uma resposta rápida e satisfatória”[11]. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta questão. É a bondade da criação, o drama do pecado, o amor paciente de Deus que vem ao encontro do homem pelas suas alianças, pela Encarnação redentora de seu Filho, pelo dom do Espírito, pela agregação à Igreja, pela força dos sacramentos, pelo chamamento à vida bem-aventurada, à qual as criaturas livres são de antemão convidadas a consentir, mas à qual podem, também de antemão, negar-se, por um mistério terrível. Não há nenhum pormenor da mensagem cristã que não seja, em parte, resposta ao problema do mal[12].

Todavia, ainda poderíamos nos perguntar: Por que Deus não criou um mundo tão perfeito, que nenhum mal pudesse existir nele? De fato, Segundo São Tomás, no seu poder infinito, Deus podia ter criado um mundo melhor[13]. No entanto, na sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis livremente criar um mundo “em estado de caminho” para a perfeição última. Este devir implica − no desígnio de Deus, juntamente com o aparecimento de certos seres e o desaparecimento de outros − o mais perfeito, com o menos perfeito; as construções da natureza, com as suas destruições. Com o bem físico também existe, pois, o mal físico durará enquanto a criação não tiver atingido a perfeição[14].

Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e livres, devem caminhar para o seu último destino por livre escolha e amor preferencial. Assim, podem desviar-se do seu fim último ordenado e racional e de fato pecar, como narra a História e nossa experiência própria. Foi assim que entrou no mundo o mal moral, ou seja o pecado,incomensuravelmente mais grave que o mal físico. Deus não é, de modo algum, nem direta nem indiretamente, causa do mal moral[15]. No entanto, permite-o por respeito pela liberdade da sua criatura e misteriosamente sabe tirar dele o bem. Como no caso de José do Egito, Santo Agostinho afirma que “Deus todo-poderoso […] sendo soberanamente bom, nunca permitiria que qualquer mal existisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso e bom para do próprio mal, fazer surgir o bem”[16].

04Os santos sempre afirmaram esta verdade. Santa Catarina de Sena declarava aos “que se escandalizam e se revoltam contra o que lhes acontece”: “Tudo procede do amor, tudo está ordenado para a salvação do homem, e não com nenhum outro fim”[17]. O inglês, São Tomás Moro, pouco antes do seu martírio, consola sua filha com estas palavras: “Nada pode acontecer-me que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos pareça, é, na verdade, muito bom”[18]. Juliana de Norwich: “Compreendi, pois, pela graça de Deus, que era necessário ater-me firmemente à fé […] e crer, com não menos firmeza, que todas as coisas serão para o bem […]. Tu mesmo verás que de todas as maneiras serão boas”[19]. São Paulo Apóstolo não hesita em afirmar que “tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).

De fato, do maior crime praticado na História, como a condenação e morte do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens, Deus, pela superabundância da sua graça (cf. Rm 5, 20), tirou o maior dos bens: a glorificação de Cristo e a nossa redenção.

A Fé na Divina Providência de Deus nos convida à confiança.

Ainda quando nos sentimos nesta vida desorientados, sem o rumo certo ou numa verdadeira “avenida de becos sem saída”, devemos nos lembrar que Deus guia nossos passos. Os caminhos divinos podem nos ser de fato desconhecidos e dolorosos, mas devemos tanto nos imprevistos miúdos do dia-a-dia como e sobretudonos grandes dramas da existência, ver os dedos discretos, amorosos e eficazes de Deus, guiando a trama de nossa vida. Assim, seremos verdadeiramente tranquilos e pacientes, abandonando-nos totalmente aos cuidados da Divina Providência.


[1]Catecismo da Igreja Católica, 321.

[2] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, q. 22, a. 1.

[3] I Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Filius, c. 1: DS 3003.

[4] Cf. São Clemente de Alexandria. Stromata, V,1,6; I, 17,86

[5] Cf. Santo Agostinho. De Trinitate III,4,9.PL 42, 873

[6] Cf. MONDIN, Battista. Quem é Deus. São Paulo: Paulus, 1997. p. 374.

[7] GARRIGOU-LAGRANGE, R. Dios. La naturaleza de Dios. Tradução José San Román Villassante. 2 ed. Madrid: Palabra, 1980. p. 79.

[8] Cf. MONDIN, Battista. Quem é Deus. São Paulo: Paulus, 1997. p. 374.

[9] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 307.

[10] Cf. MONDIN, Battista. Quem é Deus. São Paulo: Paulus, 1997. p. 374.

[11] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 309.

[12] Idem.

[13] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, q. 25, a. 6: Ed. Leon. 4, 298-299.

[14] Cf. São Tomás de Aquino. Summa contra gentiles. 3, 71: Ed. Leon. 14. 209-211.

[15] Cf. Santo Agostinho.De libero arbitrio, 1, 1, 1: CCL 29, 211 (PL 32. 1221-1223): São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 79, a. l: Ed. Leon. 7, 76-77.

[16] Santo Agostinho. Enchiridion de fide, spe et caritate. 3. 11: CCL 46, 53 (PL 40, 236).

[17] Santa Catarina de Sena.  ll dialogo della Divina provvidenza, 138: ed. G. Cavallini (Roma 1995) p. 441.

[18] Margarita Roper. Epistola ad Aliciam Alington (Agosto1534): The Correspondence of Sir Thomas More, ed. E. F. Rogers (Princeton 1947), p. 531-532. [Texto no Ofício de Leituras da memória de São Tomás Moro a 22 de Junho].

[19] Juliana de Norwirch.Revelatio13, 32: A Book of Showings to the Anchoress Julian of Norwich. ed. E. Colledge — J. Walsh, vol.. 2 (Toronto 1978), p. 426 e 422.