O pecado é a conversão às criaturas, diz São Tomás (Cf. ST I-II, q. 72, a. 6, ad 3). Sendo o homem criado para servir, amar e glorificar a Deus, tudo aquilo que o afasta deste fim deve se rejeitado, assim como aceito aquilo que o aproxima.
Ora, o homem não é constituído, como os anjos, apenas de espírito, mas de corpo e alma. Portanto, é mister o emprego de elementos materiais para viver segundo sua natureza própria.
Pareceria haver nisto uma contradição. Se o pecado é a conversão às criaturas, como pode ser que esteja em sua natureza utilizar-se destas sem pecar?
Deus é a Sabedoria em substância e não poderia criar uma aberração, por isso havendo alguma falha, devo procurá-la em meu conceito, não em Deus.
O homem não só pode, mas deve utilizar-se das criaturas materiais que estão ao seu alcance, como determinou o próprio Deus no Gênesis “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra. Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva verde por alimento”. (Gn 1, 28-30)
Qual é o erro então? A resposta é simples: Deus é o fim último do homem, e todas as outras criaturas apenas meios que devemos utilizar para mais facilmente atingir o nosso fim. Por isso, se segue, segundo Santo Inácio “que o homem tanto delas deve usar quanto o ajudam para seu fim, e tanto deve delas se afastar, quanto se lho impeçam.” (Exercícios Espirituais, 23)
Por que Deus quer que subamos até Ele deste modo? Sendo Ele a Humildade, prefere agir através de causas segundas, dando ao homem capacidade de tomar as criaturas no seu estado originário e, trabalhando-as, “criar” verdadeiras maravilhas. Estas obras saídas das mãos humanas bem podem ser chamadas, segundo a eloqüente expressão de Dante, as netas de Deus.
Uma das vias para se chegar ao conhecimento de Deus, segundo o Doutor Angélico, é a que nos dá os diferentes graus de perfeição, por exemplo de nobreza, das criaturas (Cf. S.T., I, q.2, a.3, s.). Ora, se a nobreza nos dá provas da existência de Deus, quanto mais ela aproximará d’Ele os que já O conhecem.
A nobreza é um elemento muito eficaz para elevar o homem até seu Criador e deve ter um lugar especial na mente humana para que suas obras mais perfeitamente o levem ao seu fim.
Um eloqüente exemplo disto são as carruagens do Ancien Regime, verdadeiras bombonieres para portar homens. Como é nobre que o homem ao invés de se deslocar daqui para lá caminhando, use meios como esta magnífica carruagem. É verdade que ela não tem nem de longe a capacidade de velocidade que existe nos automóveis de nossos dias, mas talvez isso seja mais uma de suas vantagens.
A velocidade automobilística foi criada para solucionar problemas, por ela criados, e que antes dela não existiam. Enquanto que a carruagem, pelo contrário, é lenta, mas esparge um ar de leveza e de serenidade para quantos a olham. É nobre, distinta e elegante.
Qual era o estado de espírito do homem que andasse nessa carruagem? Placidez, elevação de espírito, delicadeza de alma, fortaleza de pensamento. Provavelmente diferente do homem moderno, não viveria com as preocupações de que nós estamos encharcados, até quase diríamos ser ele feito de porcelana.
Mesmo a posição em que ficava o cocheiro elevava sua pessoa e sua profissão, dando aos transeuntes um belo espetáculo de dignidade e respeitabilidade.
E como seria o homem que a idealizou? Alma rica em amor a Deus, cheia de sabedoria no mais alto sentido da palavra, isto é, um conhecimento saboroso das coisas divinas (S. T. I q.43 a.5 ad 2). Não imperava nele o desejo do lucro ou da fama, mas sim a intenção de fazer refletir um aspecto de Deus e elevar as almas de quantos utilizassem ou vissem aquela carruagem.
Talvez isso não fosse explícito em seu espírito, mas de tal maneira a sociedade de então vivia tendo Deus no centro de todas as coisas que tudo quanto se produzia saia quase espontaneamente maravilhoso. Que época diferente da que vivemos…
Qual é a vantagem de fabricar um meio de locomoção lindo, mas de pouca utilidade prática, e que além disso poderia até custar mais caro? Imaginemos que alguma casa de chocolates famosa no mundo tomasse uma dessas carruagens e estilizasse caixas de chocolate com essas formas e colocando nelas os seus bombons mais requintados. Não seria considerada uma idéia originalíssima? Sem dúvida… e teria uma grande saída. Por quê? Porque a alma humana tem sede das coisas belas, pois tem sede de Deus, Beleza absoluta.
Pois bem, muito mais do que extraordinários bombons, digna é a natureza humana na qual Deus concentrou, como num microcosmos (ROYO MARÍN, Teología de la Perfección Cristiana, 82), os diferentes graus da Criação, e que Ele tanto amou que Se dignou encarnar para por ela sofrer e assim resgatá-la de sua terrível queda em nosso pai Adão.
Bem poderíamos nos perguntar qual dos meios de locomoção nos conduz mais ao nosso fim que é Deus. Quem ousaria dizer que é o último modelo de carro moderno? As criaturas devem ajudar o homem a encontrar a felicidade relativa aqui na terra a espera daquela sem fim que o aguarda no Céu. Para isso nada melhor que habituar-se, através de belezas efêmeras, à Beleza eterna que nos espera de braços abertos na eternidade.
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