Como no-lo demonstra nosso próprio empirismo, cabe a uma planta viver segundo sua espécie do mundo vegetal, em suma: nascer, crescer, multiplicar-se e no tempo estabelecido pela vontade do Criador, ter seu ocaso. Não diferem muito os seres que estão uma categoria acima: os animais. Também eles têm seu ciclo de vida como os vegetais, vivem cada um conforme sua espécie. Acima destes seres irracionais, está o homem que, por sua vez, deve viver de acordo com a sua natureza: pensar e agir à maneira dos seres racionais. Por ser uma criatura muitíssimo superior, e ter alma, compete-lhe operar de modo próprio à sua condição e organizar sua vida terrena neste prisma. Contudo é ele imagem de seu Criador (Gn. 1, 26), reflete a beleza e em alguns casos as ações divinas, quando opera com a graça; no entanto, quando faz mal uso de seu livre arbítrio, o que verificamos são ações más, que são o contrário do reflexo divino.

Há todavia um Ser infinitamente superior ao homem, que por sua vez obedece também ele à Sua natureza e vive de modo esplendoroso, bastando a si mesmo: Deus; cujas ações são essencialmente perfeitas e boas. Assim como as plantas vivem à maneira dos vegetais, os animais à maneira deles e os homens como seres racionais, Deus também vive ao seu modo, que é intrinsecamente bom: de maneira divina. Entretanto, conseguimos nós cogitar que maravilha é esta de viver divinamente? Se não fosse a encarnação de Cristo Jesus, ser-nos-ía difícil tarefa, entretanto podemo-nos figurá-la, e na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Esta, tendo-se feito carne habitou entre nós e nos fez entrever o que é viver à maneira divina. Podemos afirmar que, dentre outras coisas, verificamos o modo de agir de um Deus, pelos milagres. Tais feitos maravilhosos, muito acima da natureza que circunda o homem, marcaram de começo ao fim a vida terrena do Nosso Senhor Jesus Cristo, que passou entre os homens fazendo o bem. Revelaram-nos eles a psicologia, a bondade, o obrar, em suma todo o modo de ser, que é o próprio de Deus. Assim como Jesus viveu e falou como Deus, é conseqüente que Ele tenha agido como tal, e assim que tenha assinalado o bem pelos milagres.

Dentre os diversos aspectos que englobam os milagres de Cristo resolvemo-nos a expor alguns subsídios que nos ajudariam a compreender melhor os motivos, e até as necessidades, que O levaram a realizá-los. Demasiada seria nossa pretensão de querer esgotar tal assunto em um simples artigo, assim sendo, decidimos restringir nossa singela pesquisa a um ponto: os milagres operados pelo Messias, no tempo de Sua encarnação e vida terrena entre os homens; as necessidades e conveniências destes.

Infelizmente, muitos não acreditam que Nosso Senhor tenha operado milagres, ou então, procuram atribuir os milagres a simples fatos naturais, cancelando todo o sobrenatural, e até o maravilhoso das obras do Verbo Encarnado. Dentre as diversas escolas filosóficas que inspiraram uma exegese bíblica errada, e que negam os divinos milagres, destacam-se os Positivistas e os Racionalistas. Com efeito, para os primeiros, conceitos gerais da metafísica e questões referentes às causas do ente são rechaçados. Alegam eles que o que vai além da fronteira do mundo físico é absolutamente inacessível aos nossos meios de investigação, deste modo o maravilhoso dos feitos do Redentor são negados, não os podemos comprovar, visto que ultrapassam nosso mundo material.

Já os Racionalistas atribuíram à razão natural aquilo que só é cognoscível pela luz da fé[1], materializando o que seria obra divina e reduzindo à razão o sobrenatural.

Sobre, os que negam os milagres de Deus, disse, não sem uma certa ironia, o famoso filósofo do iluminismo, Jean-Jacques Rousseau: “Pode Deus fazer milagres? Ou seja, pode Ele revogar as leis que Ele estabeleceu? Esta questão, tratada de modo sério seria ímpia, se ela não fosse absurda. Seria honrar em demasia o fato de punir àquele que a resolveria de modo negativo: bastaria encarcerá-lo (tradução minha).[2]

Com efeito, no Catecismo da Igreja Católica, encontramos que os milagres de Nosso Senhor são dignos de fé, eles acompanharam exteriormente a Revelação: “O motivo de crer não é o fato de as verdades reveladas aparecerem como verdadeiras e inteligíveis à luz de nossa razão natural. Cremos ‘por causa da autoridade de Deus que revela e que não pode nem enganar-se nem enganar-nos’. Todavia, para que o obséquio de nossa fé fosse conforme à razão, Deus quis que os auxílios interiores do Espírito Santo fossem acompanhados das provas exteriores de sua Revelação. Por isso, os milagres de Cristo e dos Santos, as profecias, a propagação e a santidade da Igreja, sua fecundidade e estabilidade ‘constituem sinais certíssimos da Revelação, adaptados à inteligência de todos’, ‘motivos de credibilidade’ que mostram que o assentimento da fé não é ‘de modo algum um movimento cego do espírito’.”[3]

Também fora definido sobre os milagres do Redentor, no Concílio Vaticano I, que afirma categoricamente: “Se alguém disser que não pode haver milagres e que, portanto, todas as narrações sobre eles, também as contidas na Sagrada Escritura, se devem relegar ao reino da fábula e do mito; ou disser que os milagres nunca podem ser conhecidos com certeza, nem se pode por eles provar a origem divina da religião cristã: seja anátema (Dz 3034).

Como vimos, muitos tentaram e tentam de alguma forma negar os milagres de Nosso Senhor. Decorrem destas contestações que refutam ao mesmo tempo a missão salvífica do Redentor, negam que Ele fora enviado pelo Pai, e assim fazem cair por terra a mensagem e as doutrinas explanadas pelo Messias.

Exemplo concreto disto é a corrente dos chamados: Modernistas. Estes foram inculpados por Sua Santidade, São Pio X, na famosa encíclica Pascendi Dominici Gregis – sobre as doutrinas Modernistas. Com efeito, afirma o Sumo Pontífice que eles são, por sua doutrina, de cunho agnóstico: “Começando pelo filósofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo.[4]” E mais adiante mostra-nos o Santo Padre que esta doutrina nega os milagres de Cristo: “Por este motivo, se ainda se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, a ciência agnóstica o negará (…) Nega-o o filósofo como filósofo, falando a filósofos e considerando Cristo na sua realidade histórica.”[5] Deste modo, para eles, a negação das doutrinas de Cristo é uma mera conseqüência, visto que seus milagres, por não se terem dado, não conferem nenhuma autoridade ao Salvador; resulta que Sua doutrina não é digna de crédito.

Após termos visto alguns aspectos de contestação, vejamos o que nos ensina a teologia da Santa Igreja, procurando nos aprofundar em respostas à perguntas como: Era conveniente que Cristo realizasse milagres? Mais ainda: Tais milagres tinham alguma necessidade? Qual era o objetivo Daquele que os realizava?

Jesus cura o cego

O grande Santo Agostinho nos esclarece sobre o que pensar a respeito dos milagres de Cristo: “Não nos deve surpreender que Deus – quer dizer, Jesus Cristo enquanto Deus – tenha operado milagres… Nós devemos sentir mais alegria e admiração por Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo ter-se feito homem, do que um Deus tenha efetuado coisas divinas entre os homens”.[6]

Com efeito, o maior milagre por parte de Deus, fora sua encarnação no seio puríssimo da Bem-Aventurada Virgem Maria. Até sua ascensão ao Céu, a vida de Cristo constituiu um constante milagre, conseqüência deste.

Mas por que o Messias operou explicitamente milagres em sua vida pública? Qual era o seu objetivo? Era-o realmente necessário?

A isto respondemos que além de uma necessidade pedagógica, há também significados e simbologias que ensinam os que lêem os evangelhos. De fato Nosso Senhor operou milagres para confirmar sua doutrina e atestar sua onipotência divina. Os operava para a salvação e o bem dos que Ele tinha diante de si. De tal modo que Ele se recusou a realizar milagres em Nazaré, mas não por uma incapacidade de sua parte, pois em nenhum momento deixou de ser Deus, e sim por que não haveria fecundidade espiritual para os que estavam presentes. Ao contrário, devido à dureza de coração deles, poderia ser um motivo a mais de condenação.

Há também, de fato, outros motivos mais profundos, pelos quais sabemos das necessidades destes milagres, como nos mostra FILLION: “Jesus trazia aos homens um ensinamento novo, oposto em vários pontos às suas idéias estreitas, mesquinhas; e este ensinamento é não somente admirável e sublime, mas é, além do mais, repleto de mistérios. Era preciso milagres para mostrar que uma tal revelação, que se apresentava como devendo abrogar, ou ao menos transformar e completar as precedentes, tinha na realidade uma origem divina. Multiplicando seus prodígios, Jesus provava que ele era o enviado de Deus, e que, por conseguinte, seu ensinamento, mesmo transcendente e misterioso que fosse às vezes, poderia ser olhado como vindo também de cima. […]

“Por outro lado, Jesus se apresentava ao mundo como um legislador universal, e a lei nova que ele impunha à humanidade não era menos severa, menos oposta às nossas paixões e à nossa natureza decaída, do que ela era pura nobre e santificante.”[7]

Jesus cura o leproso

Devemos nos lembrar que Deus quando enviava seus profetas, facultava-lhes o dom de fazer milagres, para que deste modo, o povo visse que estes vinham de Sua parte, e que assim cumprissem os preceitos por eles pregados. O mesmo se deu com o Divino Redentor, operou milagres à vista de todos, investindo assim sua doutrina do caráter divino, para que fosse digno de crédito.

Percebemos um matiz nas ordens que Nosso Senhor dá, ao operar os milagres. De fato há ocasiões em que Ele ordena e opera diretamente, por sua própria autoridade, como na ressurreição de Lázaro, quando ordenou: “Lázaro, vem para fora!”. Outras vezes Ele reza e pede a Deus que faça o que Ele deseja, como na multiplicação dos pães (Mt. 14, 19) “tomando os cinco pães e os dois peixes, levantando os olhos ao céu, disse a bênção…”. Ele faz diante dos outros uma prece a Deus. Isto era para demonstrar, de algum modo, que Ele era ao mesmo tempo Deus e o Filho de Deus, o enviado do Pai, aquele que faz tudo o que o Pai quer, que tem uma só vontade com o Pai.

Dentre os inúmeros escritos de São Tomás de Aquino sobre a Pessoa do Verbo Encarnado há dois artigos da Suma Teológica que mais particularmente interessam nosso tema: os artigos 1 e 4 da questão 43 da IIIª parte.

Sobre a necessidade de Nosso Senhor realizar milagres diz-nos o Doutor Angélico: “Pelo poder divino é concedido ao homem fazer milagres por duas razões: primeiro, e principalmente, para confirmar a verdade que alguém ensina. As coisas que pertencem à fé são superiores à razão humana e por isso não se podem provar com razões humanas; é preciso que se provem com demonstrações de poder divino. Deste modo, quando a pessoa realiza obras que só Deus pode realizar, pode-se crer que o que diz vem de Deus. […] – Em segundo lugar, para mostrar a presença de Deus no homem pela graça do Espírito Santo. Quando a pessoa faz as obras de Deus, pode-se crer que Deus nela habita pela graça. Diz-se na carta aos Gálatas (3, 5): ‘Aquele que vos dá o Espírito e realiza milagres entre vós’. Ora, em Cristo, uma e outra coisa era preciso demonstrar, a saber, que Deus nele estava pela graça não de adoção, mas de união; e que seu ensinamento sobrenatural provinha de Deus. Por isso, era de todo conveniente que Cristo fizesse milagres. Ele próprio afirmou (Jo 10, 38): ‘Se não quereis crer em mim, crede em minhas obras’. E também (Jo 5, 36): ‘As obras que o Pai me concedeu realizar, são elas que dão testemunho de mim’.[8]

Vemos assim como era realmente imprescindível que Nosso Senhor realizasse milagres, para que fosse reconhecido como enviado de Deus, e para que suas obras fossem dignas de crédito, por parte dos que testemunhavam tais prodígios. Entretanto resta-nos uma dúvida: Os milagres feitos por Cristo foram suficientes para manifestar sua divindade? Com efeito o próprio São Tomás já se questionara a respeito, e com sua maestria própria explicou:

“Os milagres feitos por Cristo foram suficientes para manifestar sua divindade por três razões: Em primeiro lugar, por sua espécie. De fato, transcendiam todo o poder criado e não poderiam ser feitos senão por um poder divino. Foi o que disse o cego curado (Jo 9, 32): ‘Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se esse homem não fosse de Deus, não conseguiria fazer nada’.

“Em segundo lugar, pelo modo como foram feitos. Cristo fazia os milagres por um poder próprio, não orando, como outros fizeram. Diz-se no Evangelho de Lucas (6 19): ‘Dele saía uma força que curava a todos’. O que demonstra, segundo Cirilo, que ‘Cristo não recebia poder de um outro; como era Deus por natureza, manifestava o seu poder curando os doentes. Pela mesma razão fez também inúmeros outros milagres’. Comentando a frase de Mateus (8, 16): ‘Expulsou os espíritos com a palavra e curou todos os doentes’, diz Crisóstomo: ‘Repare como os evangelistas apresentam uma multidão de curados, não descrevendo cada um em particular, mas apontando com uma palavra para um mar imensurável de milagres’. Isso demonstra que ele tinha um poder igual ao de Deus Pai, como se diz no Evangelho de João (5, 19): ‘O que o Pai faz, o Filho o faz igualmente’. E logo em seguida (5, 21): ‘Assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá a vida, o Filho também dá a quem ele quer’.

“Em terceiro lugar, pelo próprio ensinamento com que Cristo se dizia Deus. Se este ensinamento não fosse verdadeiro, não poderia ter sido confirmado por milagres feitos pelo poder divino. Diz o Evangelho de Marcos (1, 27): ‘Que é isto? Um ensinamento novo e com autoridade; ele dá ordens até aos espíritos impuros e eles lhe obedecem?’.”[9]

Dentro do que foi exposto percebemos claramente o modo de ser do Divino Mestre, pelos milagres por Ele operados compreendemos a necessidade destes: – Para atestar sua união com Deus, – mostrar que era realmente enviado por Deus, – para que sua doutrina fosse digna de crédito, – e confirmar na fé aqueles que o seguiam mais de perto: os apóstolos, em vista dos períodos de provação. Pelos seus milagres atesta-se sua união com Deus: certas vezes Ele mesmo dava as ordens, em outras Ele invocava o Pai, de dentro de sua humanidade, mostrando assim de algum modo que Ele era ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Afirmam também os teólogos, e dentre eles ressaltamos São Tomás de Aquino, que era imprescindível que o Verbo Encarnado fizesse milagres nesta terra. Fazia-os para atestar Sua Missão de enviado por Deus e regenerador da humanidade decaída, demonstrando ao mesmo tempo, que ele era Deus; ou então para dar crédito aos homens sobre sua doutrina, que em muitos pontos rumava na “contramão” da que era ensinada pelos judeus. Com efeito, vários só acreditaram em suas palavras devido aos milagres operados diante de todos. [10]

Conclui-se então que era preciso que vindo à terra o Verbo de Deus operasse milagres à vista dos homens, que os milagres operados foram suficientes para mostrar aos homens que Ele é Deus, também para que os que com Ele tiveram a imensa graça de conviver pudessem, sob Sua inspiração, relatar para a posteridade o mistério tão grandioso e jamais excogitado de um Deus feito homem, que vem à esta terra de exílio para redimir a humanidade pecadora e resgatá-la assim do jugo do demônio: o maior milagre em benefício da Humanidade. Habitando entre nós, fez o que é próprio a um Deus: o bem, que se nos evidenciou pelos milagres. Eis um dos aspectos do modo ser de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por Diác. Michel Six


[1] Cf. Fides et Ratio (52).

[2] Cf. « Dieu peut-il faire des miracles? C’est-à-dire peut-il déroger aux lois qu’il a établies? Cette question sérieusement traitée serait impie si elle n’était absurde. Ce serait faire trop d’honneur à celui qui la résoudrai négativement que de le punir : il suffirait de l’enfermer. » Lettres écrites de la Montagne, in BONNIOT, 1895, p.35.

[3] Cf. C.I.C. 156.

[4] CF. PIO X, 1959, p. 6.

[5] CF. PIO X, 1959, p. 17.

[6] «Il ne doit pas nous paraître étonnant que Dieu – c’est à dire, Jésus-Christ en tant que Dieu – ait opéré des miracles… Nous devons éprouver plus de joie et d’admiration de ce que notre Seigneur et Sauveur Jésus-Christ s’est fait homme, que de ce qu’un Dieu a accompli des choses divines parmi les hommes» (Evang. Joannis tract. 17, 1, IN: FILLION I, 1909, p. 9). (tradução minha).

[7] Jésus apportait aux hommes un enseignement nouveau, opposé sur bien des points à leurs idées étroites, mesquines ; et cet enseignement est non seulement admirable et sublime, mais il est, de plus rempli de mystères. Il falait des miracles, pour montrer qu’une telle révélation, qui se présentait comme devant abroger, ou du moins transformer et compléter les précédentes, avait en réalité une origine divine. En multipliant ses prodiges, Jésus prouvait qu’il était l’envoyé de Dieu, et que, par conséquent, son enseignement, quelque transcendant et mystérieux qu’il fût parfois, pouvait être regardé comme venant aussi d’en haut. […]

D’autre part, Jésus se presentait au monde comme un législateur universel, et la loi nouvelle qu’il imposait à l’humanité n’était pas moins sévère, pas moins opposée à nos passions et à notre nature déchue, qu’elle était pure, noble et sanctifiante. (FILLION, Vol. I, 1909, p. 2-3). (tradução minha).

[8] Cf. Suma Teológica, Q. 43, a. 1.

[9] Cf. Suma Teológica, Q. 43, a. 4.

[10] Cf. C.I.C. 548.