Alessandro Schurig (3º Ano Teologia)Baptismo

Ao analisarmos a ordem da criação, percebemos que os seres que a constituem relacionam-se uns com os outros, de forma mais ou menos intensa. Na natureza animal vemos exemplos tocantes, como o do pelicano, que ao ter fracassado na busca de alimento para seus filhotes, a fim de que não morram,dilacera a própria carne para dar-lhes como nutriente. Assim, uma das formas de relação mais profundas que existem no mundo criado parece ser a do pai com o filho, que se desdobra e reflete na de mãe para filho.

A natureza humana, mais sublime que a animal, sobretudo quando tocada pela graça, chega a heroísmos mais inimagináveis: apenas como exemplo, podemos contemplar a atitude de uma venerável dama paulista do século passado, que, minutos após ter chegado a sua residência trazida por uma ambulância, engessada por ter deslocado o osso da clavícula, imersa em um mar de dores, percebeu que seu amado filho havia entrado em seu quarto para vê-la. Recordando que este estava no início de uma enfermidade, imediatamente pergunta-lhe: “Filho, já tomou seu remédio para resfriado?”, deixando assim embevecida a pueril e inocente alma de seu filho, que guardou o fato como paradigma de bem-querença para o resto da vida.

Sabemos que estes exemplos não são outra coisa que pálidos reflexos do amor que Deus tem para com seus filhos, tão inabarcável, que Ele quis criar a figura do pai e da mãe para refleti-lo, pois uma só figura não lograria fazê-lo.

Contrastando com isso, temos outra situação: alguém que não é verdadeiro filho de seus pais, mas foi adotado por eles. A adoção consiste na admissão gratuita em uma família, de um estranho que passa a ser considerado como membro desta e recebe o direito à herança dos bens.

Em suma, a adoção exige três condições: Por parte do sujeito, requer a natureza humana, pois deve haver uma semelhança de natureza com o pai adotivo. Ninguém pode adotar uma estátua. Por parte do adotante, um amor gratuito e de livre eleição, pois ninguém tem direito a ser adotado; logo ninguém tem obrigação de adotar. E exige um verdadeiro direito à herança do pai adotivo.

Talvez este estranho não receba da parte dos pais o mesmo afeto que teria sendo filho legítimo. Será isso verdade? Quiçá o seja da parte dos homens, não de Deus.

Por que estamos falando a respeito disso? Pai nosso que estais no céu… Porque o leitor com certeza assim já rezou inúmeras vezes. Ora, uma vez que invocamos a Deus como Pai, devemos saber de que forma somos filhos Dele. É o que a Teologia chama de filiação adotiva. E não podemos considerá-la sob um prisma pusilânime e distorcido da realidade. Em nossa filiação com Deus, os dois contrastes vistos acima, o píncaro do afeto e a adoção se unem em um esplendoroso e harmônico arco gótico, como veremos a seguir.

No momento de nosso batismo, todo batizado recebe uma infusão da graça santificante, e com ela, a participação na natureza divina. Isto nos torna filhos de Deus, não, porém, segundo a natureza Dele, pois O Pai eterno não possui senão um Filho único, Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem transfere eternamente, por via de geração intelectual, a infinita natureza em toda sua plenitude. Por conseqüência, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo, possui a mesma essência divina do Pai, é seu filho natural, em todo rigor da palavra[1].

Será então, nossa filiação divina uma mera ilusão? Somos filhos legítimos ou adotivos?  A teologia nos explica isso, ensinando que a graça santificante realmente nos confere uma adoção divina que sobrepuja largamente todas as condições de uma adoção humana, visto que estas “podem se reduzir, em última análise, a uma ficção meramente jurídica, totalmente extrínseca (exterior) à natureza do adotado”[2]

Em outras palavras, uma pessoa adotada pode receber todos os direitos dos filhos legítimos, mas em seu interior não ocorre câmbio algum; não recebe ele, por exemplo, o sangue da família nas veias, em sua natureza e personalidade não há transformação.

Ao contrário, Deus quando infunde em seus filhos a graça santificante, “trata-se de uma adoção intrínseca (interior), que põe em nossa alma, física e formalmente uma realidade toda divina, e que faz circular (empregando uma linguagem metafórica) o próprio sangue de Deus nas veias de nossas almas”[3]

Dessa forma, quando invocamos a Deus como Pai, o fazemos com toda a propriedade, pois pela graça santificante nós participamos da própria vida de Deus. Assim como uma rosa pertence ao reino vegetal, o leão ao reino animal, do mesmo modo podemos dizer que pertencemos à raça de Deus[4]

E tal é a maravilha que a divina graça produz em nossas almas que a doutrina católica explica que, se os minerais se assemelham a Deus simplesmente por existirem, os vegetais e os animais por terem vida, ainda que rudimentar e imperfeita, os homens e os anjos por serem imagens de Deus, uma vez que possuem vida e inteligência, a alma em estado de graça se assemelha a Deus precisamente enquanto Deus. Não só enquanto ser vivo e inteligente, mas naquilo que faz com que Deus seja Deus: sua própria divindade[5].

É absolutamente impossível a um homem atingir patamar de elevação mais alto do que o de uma alma em estado de graça. Quantos homens de nossos dias preferem voltar as costas para esses belíssimos horizontes, para correr cupidamente atrás de uma bagatela, ou um fugaz prazer oferecido pelo demônio. Peçamos a Nossa Senhora, Mãe da Divina graça, que jamais permita com que percamos este tesouro que ela nos obteve de seu Divino Filho.

 


[1] Cfr. Pe. Antonio Royo Marín, O.P., Somos hijos de Dios-Misterio de La divina gracia, BAC, Madrid, 1977, Cap. II

[2] Idem

[3] Idem

[4] Cfr. Scheeben, apud Pe. Antonio Royo Marín, O.P., Op. Cit.

[5] Cfr. Pe. Antonio Royo Marín, O.P., Op. Cit.