O 10° Congresso da SIEPM (Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Médiévale), realizado em agosto de 1997, possuía um título interpelativo: “O que é a filosofia medieval?” A esta pergunta, alguém poderia simplesmente responder: “Ora, não é nada mais do que a filosofia praticada durante a Idade Média.” No entanto, os participantes daquele evento, em geral, eram concordes em constatar o embaraço de dar uma resposta definitiva a essa aparentemente fácil questão.

No contexto do estudo da História da Filosofia, Hegel, em seu idealismo, afirmou que a filosofia de um tempo se concebe através de seu pensamento.[1] Contudo, ao ressaltar somente este enfoque, a tendência poderia ser imaginar que as ideias de uma época podem ser facilmente circunscritas em determinados parâmetros. Por outro lado, é inegável que estes são bastante difíceis de definir, sobretudo em se tratando do Medievo.

Ademais, tempos atrás, alguns autores contestavam, ainda que indiretamente, a existência de uma filosofia própria ao período por eles cognominado “Idade das Trevas”. Para outros, o pensamento medieval se reduziria a meras especulações teológicas. Outros ainda, como no caso da sátira da Escolástica perpetrada pelo humanista Erasmo de Roterdã, consideravam a filosofia (medieval) como uma mera catalogação de sutilezas abstratas sem fundamento real.[2]

Sem embargo, é indiscutível que a filosofia deste período era tratada em geral sob o enfoque muito particular da relação entre fides et ratio. E quando a consideramos em seu conjunto, percebe-se que não houve paralelos na história. Isso a tal ponto que Gilson irmanava o conceito de filosofia medieval ao de “Filosofia Cristã”,[3] sempre considerando o contexto do mundo latino.

Após estudos mais recentes, sem subestimar essa marcante característica, isto é, a harmonia entre o crer e o entender, os autores não cessam de ressaltar a dificuldade de delimitar fronteiras para o pensamento desse período,[4] o que, segundo Marenbon, se deve a que os estudiosos da filosofia medieval não recorrem como deveriam à filosofia analítica.[5] O certo é que a Idade Média está imbuída, de acordo com Alain de Libera, de “mundos múltiplos”.[6]

Ora, essa ideia de multiplicidade ou de abordagem holística é efetivamente muito bem simbolizada por uma das mais importantes invenções medievais, a saber, a universidade. Esta instituição, cujo nome vem do latim “universitas” que indica justamente a ideia de “totalidade”, nasceu no auge deste período e permanece, mais ou menos nos mesmos moldes,[7] até hoje. Já sob o ponto de vista pedagógico, é possível perceber a sua grande riqueza de formas de aprendizado, que incluía desde as disputationes, quaestiones, lectiones e quodlibeta até os sophismata, ou seja, uma arte lógica que consistia em criar problemas de ambiguidade e resolvê-los.

São Boaventura e São Leandro

É também certo, voltando ao problema inicial, que a filosofia não deve ser reduzida às ideias de um determinado período, mas está, naturalmente, fundamentada em seus próprios autores. Em nosso caso, a universalidade característica do Medievo reflete-se claramente em seus mais famosos pensadores: Boécio, Anselmo, Abelardo, Alberto Magno, Boaventura, Tomás de Aquino, Duns Scoto e Ockham, entre outros.

Podemos evidenciar a distintiva genialidade dos mencionados autores tomando como paradigma o seu mais proeminente representante: São Tomás de Aquino. Este, graças a seu amor desinteressado à verdade e à sabedoria, e a sua honestidade intelectual, não temia citar nenhum autor, fosse ele de tradição judaica, islâmica ou mesmo pagã. Pois para o Angélico, a exemplo de Santo Ambrósio, “toda verdade, independentemente de quem a diga, vem do Espírito Santo”.[8] Por esta razão, talvez seja paradoxal que a teologia tomista não possa ser bem compreendida sem os árabes Avicena (c. 9801037) e Averróis (1126-1198), cognominado “o comentador” de Aristóteles pelo Aquinate. Ou ainda, que o seu estudo sobre a essência divina não possa ser bem concebido sem Maimônides (1138-1204), autor medieval que também causa desconcerto: um judeu que escreveu em árabe em meio à cultura muçulmana da África do Norte…

Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino

Além disso, é mister considerar que o mesmo Doutor Angélico, sem os avançados recursos bibliográficos que hoje dispomos, possuía uma enorme amplitude de conhecimento, a ponto de citar de cor um vasto e variado cabedal de fontes. Junte-se a isso a sua genialidade no coordenar, quando necessário, tradições tão complexas e ricas como a aristotélica e a platônica. Já sob o ponto de vista quantitativo, o número de seus escritos, para uma época de cultura manuscrita, também causa admiração. O Index thomisticus enumera 118 obras do Aquinate, alcançando um total de 8.767.849 palavras. Ora, este número é equivalente, segundo Roberto Busa, a tudo o que hoje conservamos da Latinidade Clássica.[9] Mais especificamente, no Corpus thomisticum, “as formas diversas de palavras são 147.088, reagrupadas em 20.173 lemas. Isto corresponde a 4/5 de todo o vocabulário latino clássico que chegou até nós. O léxico de São Tomás deve ser definido como enorme e enciclopédico”.[10]

Embora o Doutor Angélico tenha tratado sobre diversos tópicos, cuja gama poderia variar desde a economia até a metafísica, é manifesto que a sua reflexão filosófica tinha como diretriz o próprio Deus. Porque tratava-se, sem dúvida, de uma incessante e profícua busca da Verdade absoluta. Com efeito, não estaria ele desafiando, com séculos de distância, certas correntes filosóficas que procuram tudo, menos o essencial? Para tal, substituem estas, ainda que inconscientemente, a metafísica ou o Absoluto, por palavras talismânicas, como a filantropia, a fraternidade, a solidariedade, o valor, etc., as quais acabam por se tornar moedas de câmbio, isentas de um real fundamento filosófico. Não urge, deveras, um resgate da “filosofia primeira”, tão bem elaborada pela Escolástica?

Contra a objeção de que o pensamento medieval é ultrapassado, recordemos a consideração de Paulo VI a respeito de São Tomás de Aquino: “O seu conhecimento filosófico, que reflete as essências das coisas realmente existentes em sua verdade certa e imutável, não é nem medieval nem próprio a qualquer nação em particular; transcende o espaço e o tempo, e não é menos válido para toda a humanidade em nossos dias”.[11]

Se isto é real, a filosofia medieval pode ser ainda mais proveitosa hoje do que na própria Idade Média.

Extraído de: Revista Acadêmica Lumen Veritatis – Editorial Abr/Jun de 2013.

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[1] Cf. Hegel, Georg W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Berlin: Dunder und Humblot, 1833, p. 19.

[2] Cf. Erasmo de Roterdã. Moriae encomium id est Stultitiae laus [Elogio da loucura], 52. In: Idem. Desiderii Erasmi Roterodami Opera Omnia. Amsterdam: North-Holland, 1969, vol. 4.3, p. 144.

[3] Gilson, Étienne. L’esprit de la philosophie médiévale. Paris: Vrin, 1998, p. 1.

[4] Cf. Pasnau, Robert. Introduction. In: Idem (ed.). The Cambridge History of Medieval Philosophy. New York: Cambridge University Press, vol. 1, p. 1-2.

[5] Cf. Marenbon, John. Introduction. In: Idem (ed.). The Oxford Handbook of Medieval Philosophy. New York: Oxford University Press, 2012, p.5.

[6] de Libera, Alain. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 2004, p. 8.

[7] Como, por exemplo, a variação de títulos de graduação: bacharelado, mestrado e doutorado.

[8] Summa Theologiae, I-II, q. 109, a. 1, arg. 1: “Omne verum, a quocumque dicatur, a Spiritu Sancto est”.

[9] Cf. Busa, Roberto. Liber manualis. Thomae Aquinatis opera omnia cum hypertextibus in CD-ROM, Milano 1996, 3 apud Izquierdo Labeaga, J.A. Santo Tomás, maestro de la Palabra interior. Alpha Omega, 1, 1998, 323-357, p. 329.

[10] Sangalli, Samuele. Il lessico settoriale delle realtà e dei fatti economici nell’Opera omnia di S. Tommaso d’Aquino: esame filosofico del suo insieme. Roma: EPUG, 2005, p. 16-17.

[11] Paulo VI. Carta a Aniceto Fernández, mestre geral dos dominicanos. 7 mar. 1964 (AAS 56, 1964, p. 304): “His philosophical knowledge, which reflects the essences of really existing things in their certain and unchanging truth, is neither medieval nor proper to any particular nation; it transcends time and space, and is no less valid for all humanity in our day”.