Admirar, eis a solução de incontáveis problemas nossos
O egoísmo nos traz a amargura e a infelicidade. Como Zaqueu, subamos com coragem e sem respeito humano a “árvore da admiração” a tudo o que é verdadeiro, bom e belo, e teremos a alegria de receber Jesus em nossa alma.
Mons. João S. Clá Dias, EP
I – O homem tem necessidade de admirar
O final do século XIX acompanhou assombrado o ingente esforço de uma menina norte-americana que marcaria a História. Acometida de grave doença aos 18 meses de idade, Helen Adams Keller (1880-1968) perdeu completamente a visão e a audição. Ficou, assim, reduzida a um triste isolamento, sem possibilidade de conhecer o exterior, a não ser pelo tato, olfato e paladar.
Essa trágica e silenciosa noite de sua mente poderia ter se perpetuado por toda a vida, se não fosse o providencial encontro com uma genial educadora, Anne Mansfield Sullivan, que conseguiu ensinar-lhe a linguagem das mãos, o alfabeto braile e, por fim, a falar fluentemente.
Depois de indizíveis dificuldades, Helen chegou a dominar o francês e o alemão, com boa pronúncia. Cursou faculdade, percorreu o mundo dando palestras e escreveu livros. Anos a fio, ela desenvolveu um quase inacreditável labor, impelida pela ânsia de se relacionar com os outros, movimento natural de todo ser humano, dotado de instinto de sociabilidade.
Ora, assim como pelo heliotropismo as plantas crescem à procura da luz, também as almas necessitam abrir-se à contemplação das criaturas para, a partir delas, subir até o Criador. Não foi diferente com Helen Keller, a qual crivava a sua mestra com perguntas como estas: O que faz o Sol ser quente? Onde estava eu antes de vir para minha mãe? Os passarinhos e os pintos saem do ovo: de onde vem o ovo? Quem fez Deus? Onde está Deus? A senhora já viu Deus? [1]
Estas são questões que revelam como a alma aspira inelutavelmente chegar à Causa Primeira de tudo, a partir das causas segundas. Pois há em nós uma inata tendência para Deus — que, por analogia, poderíamos chamar de teotropismo — a qual nos leva a fazer correlações, transcendendo da escala natural à sobrenatural. Nesse sentido, ensina São Tomás: “permanece no homem, ao conhecer o efeito, o desejo de saber que este efeito tem uma causa e de saber o que é a causa. Esse desejo é de admiração e causa a inquirição”.[2]
Ora, como tudo quanto há no universo espelha em alguma medida o Criador, o movimento ordenado da alma é deixar-se atrair pelos reflexos de verdade, beleza e bem, presentes nas criaturas.
Assim, todos devemos procurar tornar nossa alma muito propensa à admiração, de forma a, deparando-nos com algo que é elevado, santo, nobre ou simplesmente reto, nos encantarmos e remontarmos à Causa suprema. E, com toda a evidência, essa admiração cabe, sobretudo, em relação ao Homem-Deus, à sua Mãe Santíssima e à Santa Igreja.
II – Um publicano chamado Zaqueu
Naquele tempo,1 Jesus tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade.
Nosso Senhor Se dirige a Jerusalém para sofrer a Paixão. Ainda pouco antes de chegar a Jericó, o tinha anunciado aos seus discípulos pela terceira vez, mas eles “nada compreenderam de tudo isso: o sentido da palavra lhes ficava encoberto e eles não entendiam o que lhes era dito” (Lc 18, 34).
Pelo contrário, os seguidores de Jesus, entre eles os próprios Apóstolos, julgavam estar Ele a caminho da Cidade Santa para fazer um grande milagre, pelo qual Israel seria libertado do jugo romano.
É nesse clima de expectativa e otimismo que o Divino Mestre vai ser recebido em Jericó.
Ódio dos judeus pelos publicanos
2 Havia ali um homem chamado Zaqueu, que era chefe dos cobradores de impostos e muito rico.
Inteligentes, sagazes e dotados de forte senso organizativo, os romanos instituíram como cobradores de impostos, em Israel, funcionários judeus. Por conhecerem melhor seus conterrâneos, estavam estes em condições de garantir maior receita para os cofres de César, apesar de um quase inevitável desvio de recursos, pois quem se prestava a exercer essa função, naquelas circunstâncias, não costumava primar pela retidão de alma.
Naturalmente, os judeus que aceitavam tal encargo eram considerados traidores e “cofautores da dominação romana”,[3] sendo odiados por toda a sociedade hebraica. O próprio nome da função — publicano — despertava repulsa.
Ora, precisamente o chefe dos cobradores de impostos da região, Zaqueu, homem muito rico, será o protagonista desta cena evangélica. Comandar o grêmio mais detestado pelos seus patrícios equivalia a ser considerado ladrão entre os ladrões, ou seja, líder daqueles que faziam fortuna à custa da exploração do povo. Podemos, portanto, bem conjecturar o quanto era ele objeto de desprezo.
Semente de salvação
3a Zaqueu procurava ver quem era Jesus…
Não obstante, aquele publicano vai mostrar nesta passagem do Evangelho um fundo de alma muito bom.
Movido certamente pela graça, manifestava-se desejoso de ver o Divino Mestre e até, se possível, Lhe dirigir a palavra. Sentia, sem dúvida, a consciência pesada, mas ao mesmo tempo desabrochava em seu interior uma crescente admiração por Jesus. Como bem aponta São Cirilo, “germinava nele uma semente de salvação”.[4]
“Donde vinha a um homem dessa profissão um tão vivo desejo?”, pergunta-se o padre Duquesne. “Ah! Seu coração devia estar agitado por numerosos movimentos os quais, sem dúvida, ele mesmo não conseguia distinguir bem. Esse desejo, que procedia do alto, não era sem um princípio de fé, e não podia deixar de ser acompanhado de estima, de respeito e de amor ao Salvador”.[5]
A admiração leva a vencer o respeito humano
3b …mas não conseguia porque era muito baixo. 4 Então, ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali.
O Mestre entrara em Jericó seguido de uma multidão alvoroçada pelo estupendo milagre da cura do cego que pedia esmolas à beira do caminho (cf. Lc 18, 35).[6] Segundo o padre Duquesne, as ruas por onde Jesus haveria de passar mal podiam conter a aglomeração daqueles que aguardavam sua passagem.[7] Debalde procurava Zaqueu uma brecha naquela turba para satisfazer seu anseio de ver o Senhor.
Não é frequente os Evangelistas descreverem características físicas de alguém. Assim, por exemplo, não sabemos ao certo a altura de Pedro nem se João usava barba. Sem embargo, São Lucas — que inclui em seu relato observações feitas sob um prisma médico — nos informa ser esse publicano “muito baixo”, dado fundamental para bem compreendermos o que acontecerá logo a seguir.
Os pequenos de estatura são, não raras vezes, muito ágeis e espertos. Além disso, Zaqueu, a julgar pela narração do Evangelho, parece ser ainda relativamente jovem. À procura de um posto de observação favorável, corre à frente e sobe numa figueira, indicando com essa atitude que seu grande empenho em ver Jesus não resultava de mera curiosidade.
Zaqueu não era um homem tosco. Tinha numerosos empregados a seu serviço e estava acostumado a fazer cálculos. Uma pessoa de sua projeção social precisava de um motivo muito forte para trepar numa árvore “como um camponês qualquer”,[8] observa acertadamente Willam. E, mais ainda, para se expor à vista de um público cuja hostilidade lhe era manifesta.
O Evangelho não entra no detalhe de quanto tempo permaneceu ele à espera em cima da figueira. Pode-se, contudo, conjecturar que foi considerável, pois Nosso Senhor caminhava lentamente, cercado pela multidão, detendo-Se por vezes para atender um doente, dar um conselho, responder a alguma pergunta.
Nesse período, a atitude de Zaqueu foi uma verdadeira demonstração de pertinácia, confiança e combate ao respeito humano. Com efeito, quantos desaforos e chacotas não teve de suportar do alto da árvore o chefe dos publicanos! E se o fez foi porque, conforme comenta o padre Duquesne, “no fundo de seu coração, alguma esperança sustentava sua coragem, sem ele ter uma ideia clara a esse respeito. Indubitavelmente, desejava ser notado pelo Salvador, e queria que Ele conhecesse todas as disposições de sua alma”.[9]
A avidez do lucro e o apego ao dinheiro costumam diminuir e embotar a capacidade de admiração nas pessoas. Ora, ao que parece, Zaqueu não se deixara dominar completamente pela ambição, pois, apesar de ser cobrador de impostos e muito rico, dará provas de possuir um notável desprendimento e espírito admirativo. Essa ousada atitude de subir na figueira, ele a tomou, sem dúvida, movido por uma graça de enlevo por Nosso Senhor.
Uma interessante interpretação sobre o aspecto simbólico do gesto de Zaqueu, nos é dada pelo padre Maldonado ao comentar que “a turba deste mundo nos impede de reconhecer o Senhor; precisamos deixá-la e calcá-la aos pés, para nos elevarmos a uma virtude superior e ver do alto a Cristo”.[10]
O episódio apresenta ainda outro belo significado, uma lição para todos: quando nos sentirmos pequenos, devemos procurar Jesus, sobretudo no Santíssimo Sacramento, exposto no ostensório. Esse desejo de estar com Ele bastará para movê-Lo a apiedar-Se de nós e dar-nos aquilo de que nossas almas mais necessitam.
Nosso Senhor fixa seu olhar no publicano
5a Quando Jesus chegou ao lugar, olhou para cima e disse: “Zaqueu, desce depressa!”
Paremos por um instante para imaginar a cena. Como fizera ao curar o cego à entrada da cidade, Jesus se detém diante da árvore onde se encontra Zaqueu e lhe dirige um olhar pervadido de bondade. O povo se aglomera, curioso de ver o que ia suceder, talvez na expectativa de que o Mestre tomasse uma atitude de censura em relação ao cobrador de impostos. Entretanto, em lugar de repreendê-lo, Jesus chama-o afetuosamente pelo nome, e o manda descer.
Por sua ciência humana, Nosso Senhor não conhecia ainda esse publicano. Entretanto aqui revela não ignorar quem ele era, nem as virtudes que começavam a despontar em sua alma. Muito a propósito, comenta São Cirilo: “Cristo já contemplara aquela cena com seus olhos de Deus, e ao levantar as vistas, fitou essa pessoa com os olhos da carne. E como seu objetivo é que todos os homens se salvem, estendeu a esse homem sua bondade”.[11]
“Qual não teria sido a surpresa do publicano quando ouviu pronunciar seu próprio nome! E quão grande sua alegria!” — observa o padre Truyols.[12] E Jesus ainda lhe infundiu maior ânimo e confiança ao dizer-lhe “desce depressa”, pois, no acertado juízo do padre Tuya, “há nessas palavras um anseio espiritual por conquistá-lo”.[13]
É curioso notar que Zaqueu nada diz a Jesus. A julgar pelo relato evangélico, limita-se a olhá-Lo com enlevo e veneração, enquanto escuta, jubiloso, suas palavras.
“Hoje vou hospedar-Me na tua alma”
5b “Hoje Eu devo ficar na tua casa”.
Como se isso não bastasse, o Divino Mestre toma a iniciativa de convidar-Se à residência de Zaqueu, contrariando os costumes. Mas, observa Santo Ambrósio, Jesus “sabe que quem O acolhe como hóspede receberá uma abundante recompensa, e acontece que, embora não tivesse ouvido ainda seu convite, havia já lido em seu coração”.[14] Enfrentando todas as murmurações que poderia suscitar sua presença na casa de um publicano, Nosso Senhor anuncia sua visita “de um modo ao mesmo tempo régio e familiar”.[15]
O episódio confirma que nada atrai mais as graças de Deus do que um espírito tomado pela admiração. Com certeza, afirma Maldonado, “Cristo chamou Zaqueu porque notava a disposição de sua alma e a diligência posta por ele para conseguir vê-Lo passar”.[16] E Santo Agostinho comenta: “Quem considerava grande e inefável felicidade o fato de vê-Lo passar, mereceu imediatamente tê-Lo em casa. Infunde-se a graça, atua a fé por meio do amor, recebe-se em casa Cristo, que habitava já no coração”.[17]
Importa determo-nos nas palavras “na tua casa”. Sem dúvida, referia-Se Nosso Senhor à residência de Zaqueu, a qual precisava ser posta em ordem para acolhê-Lo. Para o chefe dos cobradores de impostos, isso não era difícil, pois, pela sua posição social, deveria receber com frequência visitas importantes. Não lhe faltariam criados nem recursos para isso.
Mas, do ponto de vista sobrenatural, é como se Jesus Se comunicasse com Zaqueu de olhar a olhar, de coração a coração, dizendo-lhe: “Hoje vou hospedar-Me na tua alma”. Portanto, a “casa” significa aqui também a alma que deve estar preparada para acolher o Senhor.
A admiração traz alegria
6 “Ele desceu depressa, e recebeu Jesus com alegria”.
Diante da misericordiosa iniciativa do Redentor, Zaqueu manifesta-se disposto a em tudo obedecer. Tomado de entusiasmo, “fez o que lhe mandava Cristo, e do modo como este lhe ordenara. Acabava de dizer-lhe que descesse depressa, e depressa desceu. Isso é corresponder à graça: seguir prontamente Aquele que chama, sem demora nem pretextos”.[18]
Mais ainda, aquele homem recebe Jesus “com alegria”, pois ao sentir-se inteiramente interpretado e compreendido por quem lhe é superior, sua alma se enche de júbilo e se abre para a fé.
Vemos, assim, como a admiração é excelente antídoto para a má tristeza que leva ao desânimo. Quando, à semelhança de Zaqueu, nos sentimos atraídos por Jesus e procuramos ocasiões para encontrá-Lo — seja no Sacramento da Eucaristia, seja através dos seres criados — Ele nos recompensa vindo à nossa casa, isto é, entrando em nosso convívio e enchendo-nos de graças, muitas vezes sensíveis.
Surpresa e incompreensão da opinião pública
7 Ao ver isso, todos começaram a murmurar, dizendo: “Ele foi hospedar-Se na casa de um pecador!”.
Tomados de ódio contra aquele publicano, os presentes “não puderam vencer seus preconceitos, apesar de pouco antes terem dado glória a Deus pela cura do cego, operada por Jesus”,[19] e começaram a murmurar contra Ele.
É importante notar que São Lucas afirma serem “todos”, e não apenas alguns, os que recriminavam Jesus por ir hospedar-Se na casa de um “pecador”. Esta palavra, sublinha o padre Tuya, “tinha para eles o sentido de um homem imerso em toda impureza ‘legal’, que neste caso podia ser também moral, devido às suas extorsões no exercício do cargo”.[20] Entrar na residência de um cobrador de impostos significava, para os judeus de então, macular-se e atrair sobre si a maldição de Deus.
Essa rejeição à atitude de Jesus carecia, entretanto, de qualquer fundamento. Não havia ensinado já o Divino Mestre, em disputa contra os fariseus, que não viera “chamar à conversão os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5, 32)? Bem conclui Santo Agostinho: querer impedir Jesus de visitar o lar do publicano equivalia “a censurar o médico por entrar na casa do enfermo”.[21]
Jesus, como observa o padre Truyols, não fez caso dessas murmurações. “Ele era o Bom Pastor, que viera ao mundo em busca da ovelha perdida. Para encontrá-la e reconduzi-la ao redil aceitara o convite do publicano Levi, deixara-Se tocar pela pecadora e não ignorava que a aparente delicadeza de consciência daqueles que reprovavam seu proceder não era senão um disfarce de refinado orgulho e de cruel egoísmo”.[22]
Submissão e generosidade de Zaqueu
8a Zaqueu ficou de pé, e disse ao Senhor: “Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres…”.
Este versículo mostra o quanto o publicano havia preparado a “casa” de sua alma para bem receber o Messias. Chegado àquela residência, Jesus deve ter Se recostado à moda oriental em um divã, e seria inusual que o anfitrião não fizesse o mesmo. Ora, Zaqueu permaneceu de pé, em sinal de submissão, veneração e reconhecimento da superioridade do seu Hóspede, no qual talvez vislumbrasse rasgos de divindade.
Nessas alturas, ele já deseja mudar de vida, converter-se, abandonando seus erros e pecados. De fato, inúteis teriam sido todas as graças recebidas, se não conduzissem a esse desfecho. “Jesus, o doce e misericordioso Salvador dos pecadores, era inexorável na luta contra o pecado. Exigia daqueles que queriam segui-Lo, e daqueles aos quais dispensava favores ou perdoava crimes, o propósito de romper definitivamente com todo e qualquer pecado”.[23]
O fato de Zaqueu dispor-se a dar aos pobres a metade dos seus bens prova sua sinceridade e boa-fé. Entretanto, Fillion vai mais longe, ao tomar esse gesto “como uma recordação da honra que lhe fizera Jesus, e como manifestação de que, com fé inquebrantável, O considerava o Messias prometido”.[24]
8b “…e, se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais”.
Contudo, a conversão do publicano não teria sido completa sem o desejo de reparar os males que fizera. Pois o pecado de roubo exige, além de pedir perdão a Deus, a restituição dos bens indevidamente adquiridos.
Enlevado pela contemplação da Justiça em substância, que ante ele Se encontrava, Zaqueu manifesta a disposição de cumprir essa obrigação com largueza: “Se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais”. Sua generosa atitude revela verdadeira dor pelo pecado e uma retidão de alma fruto da conversão obtida pela graça.
Esta passagem do Evangelho nos proporciona um valioso princípio para o apostolado: as autênticas conversões se conquistam sempre despertando nas almas a admiração por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Apesar da falta de méritos, é justificado por Nosso Senhor
9 Jesus lhe disse: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho de Abraão. 10 Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”.
Nosso Senhor usa aqui a palavra casa também num sentido mais profundo, referindo-se, como vimos, à alma do anfitrião. Pois “foi nesse momento que a fé de Zaqueu, sua obediência, seu desinteresse e sua caridade fizeram dele um verdadeiro filho de Abraão”.[25] Assim, ao afirmar “hoje a salvação entrou nesta casa”, Jesus declara solenemente que esse homem está perdoado.
Antes de se encontrar com o Divino Mestre, Zaqueu era um pecador que corria atrás do lucro, por vezes ilícito. Entretanto a graça introduziu em sua alma o desejo de ver Aquele que “veio procurar e salvar o que estava perdido”, e o publicano correspondeu.
Buscar Nosso Senhor, subir na árvore, descer depressa ao ser chamado, receber com alegria e atender com generosidade: eram sintomas da aceitação das graças recebidas. Para consumar a conversão, faltava apenas Zaqueu reconhecer seus pecados, pedir perdão e manifestar-se disposto a reparar o mal. Foi isso o que ele fez na presença de Jesus.
III – A admiração transforma
Em certo sentido, todos somos Zaqueus. Estando nesta vida em estado de prova, a qualquer momento pode Nosso Senhor passar diante nós e nos chamar, servindo-Se de uma leitura, uma conversa, uma pregação, ou quiçá por meio de uma moção interior da graça.
Como responderemos nós se, como ao publicano, Ele nos disser: “desce depressa, porque hoje vou hospedar-Me em tua casa?” “Saberemos imitar a generosidade de Zaqueu e, antecipando-nos à admoestação do Senhor, responder-Lhe com espontânea prontidão: ‘doravante, quero firmemente não pecar mais?’”.[26]
Tudo dependerá da admiração que tivermos.
O caminho da conversão do publicano, narrado nesta passagem do Evangelho, começou com um mero sentimento de curiosidade para com aquele Homem do qual ele tanto ouvira falar. Mas, pela ação da graça, logo se transformou em desejo de conhecê-Lo, falar-Lhe e estar com Ele, dando início ao processo que haveria de torná-lo um verdadeiro “filho de Abraão”.
Como Zaqueu, assim devemos reagir também nós, fugindo das multidões e subindo na “árvore da admiração” para melhor contemplar o Divino Mestre. Porque quem está tomado de verdadeiro enlevo, escuta a palavra do Senhor, observa seus preceitos e enfrenta todas as dificuldades para segui-Lo, até o fim.
Árduo seria avaliar até que ponto são profundas as consequências desse voltar-se enlevado para o que é superior, se não fosse São Tomás de Aquino nos ensinar: “A primeira coisa que então [ao atingir o uso da razão] ocorre ao homem pensar é deliberar sobre si mesmo. E se se ordenar ao fim devido, conseguirá pela graça a remissão do pecado original”.[27] Ou seja, derramam-se sobre ele os mesmos efeitos do Batismo sacramental![28]
Essa ousada afirmação do Doutor Angélico é analisada em profundidade por Garrigou-Lagrange, segundo o qual, se um menino não batizado e educado entre os infiéis, ao chegar ao pleno uso da razão amar eficazmente “o bem honesto por si mesmo e mais do que a si mesmo”, estará justificado. “Por quê? Porque desse modo ama eficazmente a Deus, autor da natureza e soberano bem, confusamente conhecido; amor eficaz que no estado de queda não é possível senão pela graça, que eleva e cura”.[29]
Com efeito, na admiração pelo bem o homem se torna semelhante ao objeto de seu enlevo. Pelo contrário, ao fechar-se em si mesmo, julgando encontrar nisso a felicidade, enche a alma de amargura, tristeza e frustração, pois a desvia de sua finalidade suprema que é Deus. “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em ti”,[30] ensina o grande Santo Agostinho.
Através do enlevo pelos reflexos do Criador, a exemplo de Maria, Mãe de todas as admirações, melhor nos identificaremos com Jesus, modelo perfeitíssimo de todos os homens. Terá entrado, assim, a salvação em nossa casa, pela porta da admiração! ²
[1] Cf. KELLER, Helen Adams. A história de minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p.248-249.
[2] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.3, a.8. Ver também q.32, a.8: “A admiração é um certo desejo de saber, que surge no homem porque vê o efeito e ignora a causa; ou porque a causa de certo efeito excede o conhecimento ou a potência de conhecer”.
[3] TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.889.
[4] SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Comentario al Evangelio de Lucas, 19, 2, apud ODEN, Thomas C.; JUST, Arthur A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Evangelio según San Lucas. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.392.
[5] DUQUESNE. L’Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, p.309.
[6] Respeitamos aqui a ordem cronológica da exposição de São Lucas, sem entrar na discussão exegética sobre se a cura do cego aconteceu realmente à entrada ou à saída da cidade.
[7] Cf. DUQUESNE, op. cit., p.309.
[8] WILLAM, Franz Michel. A vida de Jesus no país e no povo de Israel. Petrópolis: Vozes, 1939, p.338.
[9] DUQUESNE, op. cit., p.311.
[10] MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.752.
[11] SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, op. cit., p.392.
[12] FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Madrid: BAC, 1954, p.490.
[13] TUYA, op. cit., p.889.
[14] SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VIII, n.82. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.524-525.
[15] FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.457.
[16] MALDONADO, op. cit., p.753.
[17] SANTO AGOSTINHO. Sermo CLXXIV, c.IV, n.5: ML 38, 942.
[18] MALDONADO, op. cit., p.753.
[19] GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Año tercero de la vida pública de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.III, p.398.
[20] TUYA, op. cit., p.889.
[21] SANTO AGOSTINHO. Sermo CLXXIV, c.V, n.6: ML 38, 943.
[22] FERNÁNDEZ TRUYOLS, op. cit., p.490.
[23] KOCH, SJ, Anton; SANCHO, Antonio. Docete. Formación básica del predicador y del conferenciante. La gracia. Barcelona: Herder, 1953, t.IV, p.303.
[24] FILLION, op. cit., p.457.
[25] DUQUESNE, op. cit., p.314.
[26] KOCH; SANCHO, op. cit., p.304.
[27] SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II, q.89, a.6.
[28] Cf. Idem, III, q.66, a.11, ad 2; q.68, a.2.
[29] GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. El Sentido Común, la Filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944, p.338-339.
[30] SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.I, c.1, n.1. In: Obras. Madrid: BAC, 1955, v.II, p.82.
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