Introdução

Imaginemos a seguinte cena, tão corriqueira numa casa de família: um dos filhos, mesmo conhecendo uma proibição formal do pai, desobedece-o travessamente. O pai, ao saber do ocorrido, vê-se na contingência de punir o infrator, ainda que isto lhe seja mais dilacerante do que para o próprio filho. Entretanto, ao ser informada, a mãe pede clemência pelo pequeno travesso. Dado às instâncias maternas, não é verdade que o pai cede, em atenção ao pedido da esposa? Neste caso, o pai de família concede uma indulgência ao filho, pelo respeito à interseção maternal.

A Indulgência de Deus

A mesma situação podemos aplicar ao gênero humano, que, na pessoa de Adão, desobedeceu ao Pai Celeste. Por causa desta transgressão as portas do Paraíso nos foram fechadas e nos tornamos réus de morte; imediatamente adiantou-se Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e conquistou para nós, na Cruz, a misericórdia que não merecíamos. Diante de tamanha intercessão, Deus Pai se dobra amorosamente à vontade do Filho, e poupa o gênero humano: Deus nos é indulgente, pelo valor da interseção de Cristo.

Contudo, como é próprio a Deus de tudo fazer com a mais exímia e amorosa excelência, imolou-se Deus Filho num sacrifício perfeitíssimo, consumido no altar da Cruz, oferecendo seu Sangue para nos resgatar. Mesmo sabendo que apenas uma gota seria suficiente para remir toda a humanidade, Cristo bebeu até o fim o Cálice amargo da Paixão, e verteu todo o seu Sangue, “ele o derramou – ensina-nos o Papa Clemente VI – não como pequena gota de sangue, que todavia em virtude da união ao Verbo teria sido suficiente para a redenção de todo o gênero humano, mas de modo copioso[1]”, expiando assim em superabundância os pecados dos homens. Esta exuberância no sacrifício da Cruz fez transbordar o tesouro dos méritos de Cristo em favor da humanidade. Tal tesouro foi dado à Igreja administrar, para consolo dos pecadores, “e, por razões piedosas e razoáveis, para ser ministrado misericordiosamente aos verdadeiramente penitentes e confessados, para total ou parcial remissão da pena temporal devida pelos pecados [2]”.

Notamos, deste modo, que há um tesouro inexaurível comprado por Cristo para ser distribuído aos pecadores, e a este montante devemos ainda acrescentar os méritos da Santíssima Virgem Maria e de todos os justos. Precisamente, quando nos é oferecido, chamamos a este tesouro de indulgência.

Indulgências da Igreja

Como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica (1471), por indulgência se entende a “remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em certas e determinadas condições pela ação da Igreja, a qual, enquanto dispensadora da redenção, distribui e aplica, por sua autoridade, o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos”[3].

Notemos que é a Igreja quem, na pessoa de seu pastor, o Papa, nos dispensa este tesouro. Pois, com efeito, no poder que Nosso Senhor conferiu a São Pedro – e a seus sucessores – de abrir ou de fechar as portas do Céu aos homens (Mt 16,19), está contido o poder de retirar todos os obstáculos que impeçam o ingresso de uma alma no Céu. Ora, como sabemos, as penas temporais, que resta a uma alma pagar depois de ter seus pecados perdoados, são um obstáculo para seu ingresso na Morada Celeste.

De fato, precisamos estar cientes que o pecado acarreta uma dupla conseqüência. Quando é grave “priva-nos da comunhão com Deus e, portanto, nos torna incapazes da vida eterna; tal privação se chama ‘pena eterna’ do pecado”[4]; esta primeira conseqüência é o que comumente se chama de pecado mortal[5]. Mortal, pois mata em nossa alma a caridade, a vida da graça, ao se infringir gravemente a Lei de Deus. Este pecado desvia o homem de seu próprio Criador, fazendo-o preferir e amar mais um bem inferior do que a Deus mesmo.[6] A pena para a alma que morre neste estado, que não aceita o perdão divino, é a condenação eterna, o inferno, pois ela mesma não quererá voltar-se para Deus e pedir-lhe perdão, terá feito uma escolha irreversível de recusa a Deus.[7] A segunda conseqüência é que, qualquer pecado, seja mortal ou venial “acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado chamado ‘purgatório’. Esta purificação liberta da chamada ‘pena temporal’ do pecado”.[8] Recordemos que o pecado venial não mata a vida divina na alma, porém enfraquece a caridade e pré-dispõe para o mortal, além de se traduzir pelo apego desordenado às criaturas, que exigirá uma purificação.[9]

No sacramento da penitência, ao ser absolvido, o pecador é perdoado de suas faltas, não está mais privado da comunhão com Deus; porém resta-lhe ser purificado da pena temporal, deste apego prejudicial em relação às criaturas, que maculou sua alma. Esta purificação, como vimos, pode se dar após a morte, no Purgatório, ou por uma misericórdia de Deus, ela pode ser apagada ainda nesta vida pelas indulgências, que são o tesouro da satisfação de Cristo. A parcela do tesouro dos méritos de Cristo, nós a podemos receber de modo parcial: quando apenas uma parte da pena temporal é apagada; ou de modo pleno: quando ela é apagada inteiramente[10], é o que se chama de indulgência parcial e indulgência plenária.

Como lucrar indulgências?

Todo fiel pode, desde que cumpra os requisitos necessários, lucrar uma ou várias indulgências num mesmo dia, ou ao longo de sua vida. Contudo, Paulo VI, em sua Constituição Apostólica Indugentiarum Doctrina, sobre a revisão das indulgências, nos explica os requisitos a serem cumpridos para se receber uma indulgência plenária: “fazer uma obra enriquecida de indulgência e preencher as três seguintes condições: confissão sacramental, comunhão eucarística e oração nas intenções do Sumo Pontífice.[11] Requer-se além disso rejeitar todo o apego ao pecado, qualquer que seja, mesmo venial.”[12] Contudo, na falta de algum destes requisitos o fiel pode lucrar uma indulgencia parcial. Para se lucrar uma indulgência parcial requer-se ao fiel que cumpra a obra prescrita para tal.

No que tange à indulgência plenária, com seu maternal desvelo, a Santa Igreja prevê as dificuldades que poderiam ocorrer para se cumprir, num mesmo dia, todos os requisitos necessários a fim de lucrá-la; desta maneira, anima-nos Paulo VI: “As três condições podem ser preenchidas em dias diversos, antes ou após a realização da obra prescrita; mas convém que a comunhão e a oração nas intenções do Soberano Pontífice se façam no mesmo dia em que se faz a obra.”[13] Outra prova inequívoca da bondade de Nossa Mãe, a Santa Igreja, é o fato de que nós podemos aplicar as indulgências que lucramos, tanto as parciais, como as plenárias, em sufrágio pelas almas dos defuntos que estão no purgatório.

Antes mesmo de mostrar os modos concretos para se lucrar as indulgências, cumpre lembramos um fato que ocorreu com Santa Teresa de Jesus, para vermos a importância que se deve dar às indulgências.[14] Certo dia, extasiada e encantada, pôde a santa contemplar a alma de uma religiosa, falecida naquele instante, e que subia radiante, diretamente para o Céu. O curioso é que a bendita alma rumou para o Céu, sem sequer passar perto do purgatório, sendo que muitos achavam que a falecida era uma freira simples, sem maiores virtudes, e, por conseguinte, com suas falhas, como todos os homens. Lembremos o que escreveu São João: “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós.”[15] O fato é que, mais tarde, em um dos colóquios da grande Santa Teresa com Nosso Senhor, o Divino Mestre explicou a ela o motivo do privilégio da freira defunta. Contou o Senhor Jesus que aquela alma sempre teve grande confiança nas indulgências concedidas pela Igreja; e sempre se esforçou para ganhar o maior número delas. Como vemos, a freira soube usar do tesouro que a Igreja, maternalmente, põe à nossa disposição para, após a morte, irmos diretamente ao Céu.

Após termos visto o que são as indulgências, as disposições e as condições necessárias para recebê-las, concluiremos este artigo vendo quais obras devem ser observadas por um fiel a fim de lucrá-las tais indulgências.[16]

Indulgências parciais

– Se pode lucrar indulgência parcial quando se cumpre seus deveres e se tolera, à imitação de Cristo, as aflições de nossas vidas, elevando a Deus o espírito com alguma piedosa invocação, mesmo que seja apenas em pensamento. Ao alcance de todos, esta indulgência pode ser facilmente recebida. Com efeito, todos nós, em qualquer situação em que nos encontramos – seja o de religioso, casado, solteiro, ou ainda um trabalhador, um estudante, etc… – todos encontramos dificuldades e aflições, cada um em seu âmbito específico. O que é preciso é elevarmos nossos espírito e oferecer tudo a Deus, seja rezando (por exemplo: Ave-Maria, Pai-Nosso, Credo), seja pensando piedosamente n’Ele, para lucramos tantas indulgências quanto o número de oferecimentos que fizermos.

– Também quando, com espírito de fé e com misericórdia, um fiel dispõe de seus bens, ou ainda de si mesmo, em atenção e serviço aos mais necessitados. Quando excuta uma obra de caridade. Contudo, para que lucre a indulgencia parcial, é preciso que tal obra caritativa esteja mesmo voltada para o serviço dos irmãos mais carentes. Nisto percebemos que mais lucra quem dá do que quem recebe, pois, o que são os bens materiais em comparação com a libertação ou diminuição das penas temporais?

– Lucra ainda indulgência parcial o fiel que, espontaneamente, com espírito de penitência, se abstém de coisa que é inteiramente lícita e agradável. Com isto, o fiel é ajudado a refrear suas más inclinações, e, sujeitando seu corpo, se conforma mais estritamente a Cristo. Estes são os pequenos sacrifícios do dia-a-dia, que podemos oferecer a Deus e por amor a Ele nas mais variadas circunstâncias: sendo solícito para com um irmão que nos pede algo que é de si árduo, tendo paciência com os demais, sendo obedientes às autoridades competentes, sobretudo quando nos pedem algo de difícil – porém nunca para algo contrário à moral – não comendo uma deliciosa sobremesa, por exemplo.

– Recebe indulgência parcial, todo fiel que professa publicamente sua fé, quando dá livremente um testemunho de fé diante dos demais, nas circunstâncias particulares da vida no dia-a-dia.

– Também outros atos ou orações nos fazem lucrar indulgências parciais, como: a recitação de ladainhas (as devidamente aprovada pela autoridade eclesiástica), o Creio em Deus, o Magnificat (Minha alma engrandece o Senhor, Lc. 46-55), a Salve Rainha, o Lembrai-vos ó piíssima Virgem Maria, a oração ao Anjo da Guarda (Santo Anjo do Senhor), o Salmo 50 (Senhor tem piedade, segundo a vossa bondade), o sinal da Cruz, uma comunhão espiritual, visitas breves ao Santíssimo Sacramento para adorá-Lo, entre outras orações.

O mesmo para os fiéis que portam devota e religiosamente alguns objetos de piedade, como: crucifixo, cruz, terço, escapulário, medalha. Note-se que estes objetos devem estar validamente abençoado. Entretanto, se o objeto foi bento pelo Santo Padre, o Papa, ou por um bispo, o fiel que o porta devotamente obterá uma indulgência plenária, no dia da festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo (29 de junho), sendo preciso fazer uma profissão de fé sob forma legítima, como a recitação do Creio.

Indulgências plenárias

Há ainda as indulgência ditas plenárias, que, como vimos, apagam totalmente as penas temporais – daí seu valor intrínseco ser maior. Papa lucrá-las cumpre também observar os três requisitos que mencionamos acima, bem como desapegar-se de todo tipo de pecado. Ganha-se uma indulgência plenária quando:

– Se faz uma adoração ao Santíssimo Sacramento de ao menos meia hora.

– Se faz a leitura das Sagradas Escrituras ao menos por meia hora, com a devida veneração e à maneira de leitura espiritual. Note-se que deve ser um texto aprovado pela autoridade competente. Ao fiel impossibilitado de ler por si, poderá lucrar a indulgência quando outro ler para ele, ou quando ele acompanhar uma leitura da Bíblia em áudio ou em vídeo.

– Se reza o rosário de Nossa Senhora numa igreja, numa capela ou oratório, ou ainda em família ou numa comunidade religiosa.

– Quando se recebe com piedade e devoção a bênção dada pelo Papa, urbi et orbi, para Roma e o mundo, também é válida a bênção que for ouvida na rádio, acompanhada na televisão, ou ainda se for acompanhada mentalmente – outra faceta da maternal bondade da Santa Igreja.

– Ao fiel que se dedicar a aprender ou ensinar a reta doutrina cristã. Grande incentivo para crescermos nos conhecimentos divinos e no amor a Deus.

– Ao fiel que participar piedosamente de uma solene procissão eucarística.

– Ao fiel que, na Sexta-Feira Santa, participar da adoração da Santa Cruz, na solene celebração litúrgica.

– Aos fieis que fazem sua primeira comunhão, e ainda aos que assistem a uma cerimônia de primeira comunhão.

– Ao sacerdote que, no dia marcado, celebra sua primeira Santa Missa, bem como para os fiéis que a assistirem.

– Ao fiel que, na celebração da Vigília Pascal, ou no dia do aniversário de seu batismo, renovar suas promessas batismais por alguma forma legitimamente aprovada.[17]

– Há ainda as indulgências plenárias que qualquer um de nós pode receber, porém que são aplicáveis somente às almas do purgatório, quando: visitar devotamente um cemitério entre os dias primeiro e oito de novembro, e lá rezar pelos defuntos. Ou quando no dia dois de novembro (dia dos fiéis defuntos), visitar uma igreja ou um oratório e aí rezar um Creio e um Pai-Nosso.

Pe. Michel Six, EP 

BIBLIOGRAFIA

– ANTONIO DE OLIVEIRA, Severiano. As indulgências. In: Revista Arautos do Evangelho. Ano 3, nº 33, setembro de 2004.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 11ª ed. São Paulo: Loyola, 2001.

– DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e de moral. Trad. LUZ, José Marino; KONINGS, Johan. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007.

Indulgências. Orientações litúrgico-prastorais. Trad. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2005.

– PAULO VI. Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina. http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_constitutions/documents/hf_p-vi_apc_01011967_indulgentiarum-doctrina_po.html, acessado em 05 de novembro de 2010.


[1] DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e de moral. Trad. LUZ, José Marino; KONINGS, Johan. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007. Dz 1025.

[2] Idem, Dz 1026.

[3] Cf. Paulo VI, Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina, norma nº 1. AAS 59 (1967) 21.

[4] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 11ª ed. São Paulo: Loyola, 2001. Nº 1472.

[5] Cf. Idem, Nº 1855.

[6] Cf. Idem.

[7] Cf. Idem, Nº 1861.

[8] Idem, 1472.

[9] Cf. Idem, Nº 1863.

[10] A indulgência plenária só se recebe uma vez ao dia, ao contrário da parcial, que se pode receber várias vezes num mesmo dia. Contudo, “in articulo mortis”, pode-se lucrar outra indulgência plenária, mesmo que já se tenha recebido uma no mesmo dia. Cf. Paulo VI, Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina, normas nos 6 e 18. AAS 59 (1967) 22 e 23.

[11] A oração pode ser um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, porém o fiel pode escolher outra oração, conforme sua piedade. Cf. norma nº 10. AAS 59 (1967) 22.

[12]  Idem, norma nº 7.

[13] Idem, norma nº 8.

[14] Cf. Revista Arautos do Evangelho, nº 33, setembro de 2004. P. 36.

[15] Cf. 1 Jo 1,8.

[16] Tanto para as indulgências parciais, como para as plenárias, elegemos algumas que nos parecemos mais oportunas, numa obra ao alcance dos fiéis, o livro: Indulgências – Orientações litúrgico-pastorais. Trad. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Paulus, 2005.

[17] A indulgência será parcial se o fiel utilizar outra forma.