O Apostolo São Paulo, na Carta aos Romanos, trata longamente sobre a questão da lei, a justiça e o erro. Nos versículos 14 e 15 do segundo capítulo lemos: “Os pagãos, que não têm a Lei, fazendo naturalmente as coisas que são da Lei, embora não tenham a Lei, a si mesmos servem de lei; eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam mutuamente.” (Rom 2, 14-15)

O Catecismo da Igreja Católica, ao falar dos atos humanos, resume a doutrina do Apóstolo Paulo dizendo que todo homem nasce com o a capacidade  de distinguir entre o bem e o mal, e com o dever moral de escolher um e evitar o outro, gravado no coração. “Presente no coração da pessoa, a consciência moral (cf Rm 2, 14-16) o ordena, no momento oportuno, a praticar o bem e evitar o mal. Julga também as opções concretas aprovando as que são boas e denunciando as que são más. (cf Rm 1, 32). Atesta a autoridade da verdade com referência ao Bem supremo pelo qual a pessoa humana se sente atraída e cujos mandamentos acolhe.” (CIC n° 1777)

O que é está lei escrita no coração humano? Qual a relação com a consciência? E qual o papel da razão e seus raciocínios neste julgamento? Na sua célebre Encíclica Libertas Prestantíssimum, onde se expõe a doutrina católica sobre a questão da liberdade dos atos humanos, Leão XIII lança uma ampla luz sobre está questão. Ele demonstra que o primeiro lugar na escala de valores do homem, ajudando-o a escolher o reto caminho para o seus atos, é ocupado pela “Lei Natural, que  está escrita e gravada na mente de cada homem; e que é nada mais do que a nossa razão, nos obrigando a fazer o bem e proibindo o pecado.” (n° 8.)

Assim, Leão XIII identifica a Lei Natural presente no homem com a própria razão humana. Para entender bem o que isto significa, recorrermos ao Doutor Angélico, pois, no seu realismo, ele soube encontrar a objetividade da verdade.

São Tomás explica que[1] no universo há uma ordenação entre os seres de maneira que existe uma como que continuidade entre os vários graus de seres. Assim, não existe uma caída abrupta, a maneira de um degrau, entre duas ordens diversas de seres, mas existe uma continuidade à maneira de uma rampa. E, as naturezas dos seres inferiores tocam, por assim dizer, no seu ápice, ao ponto mais ínfimo da natureza superior. Para entender está afirmação, basta analisar as diversas naturezas. As plantas e os animais constituem dois grandes reinos. Os animais – seres mais perfeitos que as plantas – possuem, além das potências chamadas vegetativas – nutrição, crescimento e reprodução –, as potências sensitivas, apetitivas e locomotoras.[2]

Entretanto existem certos seres como que intermediários entre os animais e as plantas que fazem uma como que transição entre estas duas ordens de seres. No reino animal, há toda uma gradação na qual as potências de locomoção ou as potências sensitivas são limitadas. Por exemplo, existem animais que não possuem a vista, o olfato ou a audição, ou estas potências são muito sumárias.[3] Finalmente, existem certos animais, como os unicelulares, que sem deixar de ser animais, possuem tão primitivamente as potências próprias do reino animal, que quase parecem plantas. De outro lado, existem plantas que, por alguns lados, parecem ser animais e como que encostam – na gama dos seres – no reino animal, como por exemplo as plantas carnívoras.

Pois bem, no universo de seres dotados de inteligência, pode-se distinguir dois tipos de seres:  os homens, compostos de espírito e matéria, e os anjos, puros espíritos. A inteligência humana, considerada sob o prisma da pura natureza, é bem menos perfeita que a angélica, pois é discursiva e precisa da investigação através dos sentidos para chegar a conhecer a verdade. Em contraste com o modo natural de conhecer próprio à inteligência angélica.

Agora, conclui São Tomás, por causa do princípio acima citado, “a alma humana, naquilo que é supremo dela, toca em algo que é próprio da natureza angélica, a saber, ter conhecimento de algumas coisas instantaneamente e sem investigação, ainda que também nisto é inferior ao anjo, pois destas coisas também, só pode conhecer a verdade recebendo-a dos sentidos.” (De Veritate. q. 17, a. 1. sol.)

“Mas no anjo pode-se distinguir dois tipos de conhecimento: o especulativo, por onde o anjo contempla de modo simples e absoluto, a mesma verdade das coisas; e o prático (…). Disto, deve-se concluir que na natureza humana, enquanto esta toca à angélica, é necessário que o conhecimento da verdade, tanto nas coisas especulativas, como as coisas práticas, seja sem investigação. É, do mesmo modo, necessário que este conhecimento seja o princípio de todo conhecimento posterior – especulativa ou prática – pois é necessário que os princípios sejam mais certos e estáveis.” (q. 17, a. 1. sol.)

Assim, afirma São Tomás, existe na alma (ou mais propriamente, acoplado à razão) um hábito natural ligado à razão especulativa, por onde ela intui os primeiros princípios das ciências especulativas – chamado entendimento dos princípios (intellectus principorum)[4] –, e um outro hábito natural dos primeiros princípios  operativos (ligado à razão prática), que são os princípios universais do direito natural, chamado o sindérese. Estes hábitos dão um conhecimento certo e sem investigação dos primeiros princípios. Agora, os princípios universais do direito natural são os princípios da moral. Logo, a sindérese é um hábito da razão prática que dá uma intuição dos princípios morais.

Extraído da monografia: A Sindérese: Fundamento da Moral, pelo Pe. Joshua Alexander Sequeira, EP, no Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista, São Paulo, 2007.


[1]cf. De Veritate. q. 17, a. 1. sol.

As citações de De veritate neste trabalho são, quando outra fonte não é indicada, traduções nossas do texto espanhol da edição bilíngüe (espanhol-latim) do BAC.  Santo Tomas de Aquino opúsculos y cuestiones selectas (II). Madrid: 2003. As outras traduções foram consultadas para entender passagens complicadas.

[2]Aristóteles, no De Anima, já fez esta distinção entre os diferentes tipos de seres e das potências dos vários seres. Para as potências dos animais, ver Livro II. a.3

[3] Aristóteles, curiosamente, chama estes animais de ‘animais imperfeitos’ (ver De Anima. Livro III. a. 11).

[4] O entendimento dos princípios é mencionado por Aristóteles em Ética a Nicomaco, liv. VI, cap. VI, 2. O termo foi adotado por São Tomás para exprimir o hábito dos primeiros princípios do intelecto especulativo.