1. A desigualdade harmônica do universo, espelho do Criador
Por que razão quis Deus realizar a obra da criação, em seus vários seres, dentro de uma ordem a um tempo harmônica e desigual? O Doutor Angélico, através de sua lógica adamantina, elucida a questão com um argumento muito singelo. Ele explica que, se Deus tivesse criado todas as coisas iguais, não haveria senão um grau de bondade na ordem do universo e, portanto, a obra do Criador não seria perfeita,[1] nem O espelharia de forma adequada. De maneira muito didática, ele involucra esse princípio num exemplo tirado da vida cotidiana:
“Como o pedreiro coloca pedras do mesmo gênero em diversas partes da construção sem injustiça, não por causa de uma diferença precedente entre as pedras, mas atendendo à perfeição de todo o edifício, que não existiria se as pedras não fossem nele colocadas de maneira variada; assim também Deus, no princípio, para que houvesse perfeição no universo, criou diversas e desiguais criaturas, segundo sua sabedoria, sem injustiça, não pressupondo diferença alguma em seus méritos.”[2]
Este princípio da multiplicidade e desigualdade da criação como reflexo do Criador reluz em vários outros trechos do Aquinate. A título de exemplo, observem-se os seguintes: “nosso intelecto conhece a Deus a partir das criaturas; assim, ele O conhece na medida em que estas O representam”,[3] e que “uma criatura qualquer representa Deus e lhe é semelhante enquanto é dotada de alguma perfeição”.[4]
Sendo assim, se as criaturas se assemelham ao seu Criador e O refletem em medidas desiguais e na proporção do grau de perfeição que possuam, deduz-se, como consequência lógica, que Deus quis criar a ordem do universo dentro de uma lei de desigualdade.
Essa desigualdade, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, é harmônica, proporcionada e bela, e franqueia um encontro fácil com Deus, porquanto ajuda a discerni-Lo nos vários graus em que Ele é refletido em toda a ordem do criado. Assim, encontra-se num rochedo um reflexo da perenidade de Deus (reino mineral);
numa planta à procura da luz a figura do desejo do Absoluto (reino vegetal); num passarinho multicor que chilreia, a transparência da infinita suavidade, graciosidade e beleza divinas (reino animal); e no reino humano, cujo primeiro exemplar foi criado à imagem e semelhança do Criador (Cf. Gn 1,26) – considerando cada homem em sua individualidade e conforme sua vocação específica –, também os mais variados aspectos do infinito caleidoscópio divino se manifestam, especialmente nos santos da Igreja: a dignidade de um São Bento, o desapego do “Poverello” de Assis, a sabedoria de um Santo Agostinho, etc. Isto atinge seu auge no reino angélico, onde, segundo afirma São Tomás de Aquino, “é impossível haver dois anjos de uma mesma espécie. Como seria também impossível dizer que a brancura e a humanidade, separadas da matéria, seriam muitas, visto que elas só são múltiplas porque estão em muitas substâncias”.[5]
Ademais, além de haver variedade de reinos, também estes, em si mesmos considerados, estão divididos em graus desiguais, como lembra o mesmo santo doutor:
“É preciso dizer que como a sabedoria de Deus é a causa da distinção entre as coisas, é também a causa da desigualdade. […] Por isso, nas coisas naturais, as espécies parecem estar organizadas por graus. Por exemplo: os corpos mistos são mais perfeitos que os simples, as plantas, mais que os minerais, os animais, mais que as plantas, os homens, mais que os outros animais. E em cada um desses graus encontra-se uma espécie mais perfeita que as outras. Portanto, como a sabedoria divina é causa da distinção entre as coisas para a perfeição do universo, assim também é da desigualdade. Pois o universo não seria perfeito se se encontrasse nas coisas apenas um grau de bondade.”[6]
Essa diversidade existente nos seres é boa per se, pois nela se encontra um reflexo de Deus, e como tal deve ser conservada, como lembra São Boaventura, citando Santo Agostinho: “Dita o direito natural que os graus sejam conservados, pois ‘todas as coisas não seriam tais se todas fossem iguais’”.[7]
Como consequência lógica dessa gradação nos seres, sucede que haja na ordem da criação superioridades e inferioridades, pois “onde há graus, aí há também superioridade e inferioridade”.[8] Porém, conclui o Doutor Seráfico, “se o que é inferior não se subordina ao que é superior, não se conservam os graus”.[9]
2. A necessidade da obediência para a conservação da harmonia do universo
De fato, “foi conveniente que, nas coisas naturais, as superiores movessem as inferiores à sua própria ação, pela excelência do poder natural que Deus lhes concedeu”,[10] havendo uma subordinação das últimas às primeiras.
Podemos observar, a título de exemplo, que os satélites se reúnem em torno dos planetas e estes, por sua vez, giram em torno de uma estrela, sendo movidos por ela. Também os vegetais, pela lei do heliotropismo, são continuamente movidos e atraídos pelo astro-rei. Os animais, em suas várias espécies, se agrupam em torno de um líder que os protege contra as espécies nocivas. E no homem, “microcosmos” segundo São Gregório Magno,[11] as células se agrupam para formar tecidos; estes, por sua vez, órgãos; os quais geram, depois, sistemas. Assim é a ordem natural, onde, por desígnio de Deus, os seres naturalmente mais excelentes movem, e os seres menos excelentes são movidos, numa subordinação e ordem perfeitas.
Ora, assim como na ordem dos seres irracionais naturalmente os inferiores deixam-se mover pela ação dos superiores, assim também deve ser no âmbito da atividade humana, com a diferença de que os homens, seres dotados de razão, o fazem pondo em ato uma potência que não foi dada aos seres irracionais: a vontade. Em outros termos, é o que diz o Aquinate: “Como as ações das coisas naturais procedem das forças naturais, assim também as operações humanas procedem da vontade humana”.[12] E assim como nas coisas naturais foi conveniente que as superiores movessem as inferiores à sua própria ação, pela excelência do poder natural concedido por Deus, como acima referimos, “…é normal também que na atividade humana os superiores movam os inferiores mediante sua vontade, em virtude da autoridade estabelecida por Deus. Ora, mover pela razão e pela vontade é mandar. Por isso, assim como em virtude da ordem natural instituída por Deus os seres naturais inferiores se submetem necessariamente à moção dos superiores, assim também nos assuntos humanos, pela ordem do direito natural e do divino, os súditos devem obedecer aos superiores.”[13]
Com isto, constata-se que “a obediência a um superior é um dever de acordo com a ordem divina estabelecida no universo”,[14] e sem ela a sociedade se desfaria inteiramente. Assim como na ordem natural um planeta que se destacasse da atração e da influência do Sol ficaria a vagar pelo espaço ou se chocaria com outros astros, produzindo uma hecatombe de consequências inimagináveis no universo; ou um vegetal que deixasse de ser atraído pelo Sol, perderia sua direção e, dentro em pouco, feneceria pela ausência do heliotropismo; ou um filhote abandonado, destinado a crescer isolado na floresta inóspita, sem a proteção e o amparo de seu líder, não sobreviveria às famintas feras noturnas; ou o próprio organismo humano que, por uma revolta ou desobediência de suas células, gerasse um câncer e deixasse de funcionar em sua ordem e subordinação interna, levaria o homem necessariamente à morte, assim também ocorreria na sociedade humana com o deperecimento da virtude da obediência, pois os homens, não mais se submetendo uns aos outros em função da autoridade concedida por Deus, subverteriam a ordem estabelecida por Ele, desencadeando um processo de desagregação da sociedade que, assim, estaria fadada às piores catástrofes.
Entretanto, a cruel realidade é que o homem, depois do pecado original, tem grande dificuldade em pôr-se em seu devido lugar nesta ordem hierárquica. Ora, como se observou acima, deixar-se guiar por outrem e ser conduzido de modo adequado é extremamente conveniente para a boa disposição das coisas e, por isso, torna-se necessária a prática da virtude da obediência. É ela que permite à sociedade conservar na devida harmonia as diversas classes, fazendo com que o relacionamento humano se mantenha sempre dentro de uma perfeita ordem – seja na vida laical ou numa ordem religiosa, através de superiores intermediários –, gerando a paz, tanto no âmbito da sociedade espiritual, quanto no da esfera temporal.
Extraído da monografia “A obediência na escola espiritual de Plinio Corrêa de Oliveira” pelo Pe. Flávio Roberto Lorenzato Fugyama, EP
[1] “Non enim esset perfectum universum, si tantum unus gradus bonitatis inveniretur in rebus”. S. Th. I, q. 47, a. 2.
[2] “Sicut enim artifex eiusdem generis lapides in diversis partibus aedificii ponit absque iniustitia, non propter aliquam diversitatem in lapidibus praecedentem, sed attendens ad perfectionem totius aedificii, quae non esset nisi lapides diversimode in aedificio collocarentur: sic et Deus a principio, ut esset perfectio in universo, diversas et inaequales creaturas instituit, secundum suam sapientiam, absque iniustitia, nulla tamen praesupposita meritorum diversitate”. S. Th. I, q. 65, a. 2, ad 3.
[3] “Intellectus autem noster, cum cognoscat Deum ex creaturis, sic cognoscit ipsum, secundum quod creaturae ipsum repraesentant”. Cf. S. Th. I, q. 13, a. 2.
[4] “Qualibet creatura intantum eum repraesentat, et est ei similis, inquantum perfectionem aliquam habet”. Cf. Loc. cit.
[5] “Impossibile sit esse duos angelos unius speciei. Sicut etiam impossibile esset dicere quod essent plures albedines separatae, aut plures humanitates; cum albedines non sint plures nisi secundum quod sunt in pluribus substantiis”. Cf. S. Th. I, q. 50, a. 4.
[6] “Et ideo dicendum est quod, sicut sapientia Dei est causa distinctionis rerum, ita et inaequalitatis. […] Unde in rerum naturalibus gradatim species ordinatae esse videntur: sicut mixta perfectiora sunt elementis, et plantae corporibus mineralibus, et animalia plantis, et homines aliis animalibus; et in singulis horum una species perfectior aliis invenitur. Sicut ergo divina sapientia causa est distinctionis rerum propter perfectionem universi, ita et inaequalitatis. Non enim esset perfectum universum, si tantum unus gradus bonitatis inveniretur in rebus”. S. Th. I, q. 47, a. 2.
[7] “Ius naturale dictat, gradum esse servandum, ‘quia, si essent omnia aequalia, non essent omnia’”. Cf. BOAVENTURA. De obedientia, a. 1, n. 6. In: Obras de San Buenaventura. Madrid: BAC, 1949. p. 249-250. (Tradução do autor).
[8] “Ubi autem gradus, ibi est superioritas et inferioritas”. Loc. cit. (Tradução do autor).
[9] “Si inferius non subiaceat superiori, non servatur gradus”. Loc. cit. (Tradução do autor).
[10] “Oportuit autem in rebus naturalibus ut superiora moverent inferiora ad suas actiones, per excellentiam naturalis virtutis collatae divinitus”. S. Th. II-II, q. 104, a. 1.
[11] “Com razão escreveu São Gregório Magno que o homem é, em seu ser natural, uma espécie de microcosmos, um pequeno mundo, um resumo e compêndio de toda a criação: porque existe, como os minerais; vive, como os vegetais; sente, como os animais; e entende, como os anjos”. Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Somos hijos de Dios: Misterio de la divina gracia. Madrid: BAC, 1977, p. 6. (Tradução do autor). “Omnis autem creaturae aliquid habet homo. Habet namque commune esse cum lapidibus, vivere cum arboribus, sentire cum animalibus, intelligere cum angelis”. GREGÓRIO MAGNO, Hom. 29 super Evang.: ML 76,1214.
[12] “Sicut actiones rerum naturalium procedunt ex potentiis naturalibus, ita etiam operationes humanae procedunt ex humana voluntate”. S. Th. II-II, q. 104, a. 1.
[13] “…etiam oportet in rebus humanis quod superiores moveant inferiores per suam voluntatem, ex vi auctoritatis divinitus ordinatae. Movere autem per rationem et voluntatem est praecipere. Et ideo, sicut ex ipso ordine naturali divinitus instituto inferiora in rebus naturalibus necesse habent subdi motioni superiorum, ita etiam in rebus humanis, ex ordine iuris naturalis et divini, tenentur inferiores suis superioribus obedire”. S. Th. II-II, q. 104, a. 1.
[14] “Obedire autem superiori debitum est secundum divinum ordinem rebus inditum, ut ostensum est”. S. Th. II-II, q. 104, a. 2.
A sabedoria de Deus é infinita e absoluta!