Francisco Berrizbeitiah
Qual farol que, em meio às trevas, irradia sua luz salvadora ao náufrago sem alento na confusão de um mundo materialista, neopagão e secularizado, a Igreja resplandece com maior brilho diante do homem atual.
Dentre os modos pelos quais ela exerce esta missão salvadora, está a via da beleza, via pulchritudinis, que parece ser, na atualidade, um dos métodos pastorais mais profícuos para o anúncio do Evangelho, oferecendo as tábuas da esperança a uma humanidade abandonada ao fragor das apreensões que rondam o mundo atual. Esta ação da Igreja se dirige de modo especial àquela porção de homens cuja atração pelo divino se funda no senso da admiração, do maravilhoso e da transcendência.
A voz dos Papas
Neste sentido, a voz do Magistério se tem feito ouvir reiteradamente, pois, conforme explicava o Papa Paulo VI, “o mundo em que vivemos tem necessidade da beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, traz o gozo ao coração dos homens e um fruto precioso que resiste ao tempo, une as gerações e lhes faz comungar na admiração”.[1]
João Paulo II propunha a via da beleza a fim de que a humanidade pudesse voltar para Deus através do maravilhamento, levando-a à experiência do Absoluto, pois “diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna. […] Os homens de hoje e de amanhã têm necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Graças a ele, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição, que ‘a beleza salvará o mundo’[2]. A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente”.[3]
De modo semelhante, Bento XVI tem recordado, em diversos momentos, a importância desta via, como, por exemplo, aos artistas sacros, cuja “missão consiste precisamente em suscitar a admiração e o desejo do belo, formar a sensibilidade das pessoas e alimentar a paixão por tudo aquilo que é expressão autêntica do gênio humano e reflexo da Beleza divina”.[4]
A apologia da beleza transcendental na obra teológica de Von Balthasar
Não são somente os últimos sucessores de São Pedro que têm relembrado o papel do pulchrum na evangelização ou na teologia. Neste sentido, merece destaque Hans Urs Von Balthasar (1905-1988), cujo mérito – entre outros – está em ter recuperado a categoria do belo e sua interpretação na mensagem teológica cristã do século XX.
Apesar de Balthasar ser teólogo, sua obra se caracteriza por um especial enfoque filosófico, pois desta forma visava responder à altura algumas objeções à beleza transcendental, presentes em certas correntes de pensamento.
Salvaguardando o primado da iniciativa divina sobre a humana, Balthasar opõe-se ao antropologismo filosófico e teológico dominante na década de 60 e contesta o método transcendental de Karl Rahner. Para o autor, não é o objeto (a Revelação) que tem de adequar-se à modalidade de recepção do sujeito (o homem), mas o sujeito ao objeto.
Também, ao contrário da proposta subjetivista da moderna filosofia da consciência, a qual sustenta que o originário e constitutivo do espírito consiste na autonomia de uma consciência fechada em si mesma, Balhasar afirma a abertura ao ser através da contemplação das criaturas. Esta consideração conduz a uma relação de admiração e contingência. Deste enlevo, chega-se à relação com algo que supera os limites humanos, ou seja, num comércio de dependência direcionada ao princípio causal de todas as criaturas, ao próprio Deus[5].
A via da beleza segundo Von Balthasar
Balthasar afronta a perplexidade de se desenvolver a teologia cristã através da beleza, argumentando que a visão do verum e do bonum são completadas mediante o aporte do pulchrum, pois a luz dos transcendentais só poderá brilhar se permanecer íntegra.
De fato, o teólogo suíço explica que todo homem, por amor ao absoluto, procura conhecer a verdade que o transcende, percorrendo vários caminhos, embora nem todos passíveis de chegar até Deus. A beleza seria uma destas vias, mas, lamentavelmente, “a categoria do belo ocupa na filosofia e na teologia contemporânea um papel insignificante”[6], pois na época moderna, a religião e a teologia afastaram-se da beleza, impuseram-lhe enérgicas fronteiras, degenerando em anacronismo para a filosofia, a ciência e a teologia[7].
Por isso, insiste que o homem moderno, colocado diante do Verbo e de suas criaturas, tem de reaprender a ver aquilo que revela uma teofania, a partir da beleza transcendental. Nesta perspectiva, tanto a vida do Redentor como as maravilhas da criação aparecem em seu caráter, embora abismático, como algo sublime e majestoso, submerso no gratuito mistério do amor de Deus.
Alguns teólogos passaram a recriminar no autor seu interesse aparentemente exclusivista pela beleza, o que de modo evidente não corresponde à intenção de Balthasar. O teólogo suíço, por sua vez, convida a não se recusar aprioristicamente esta tentativa, qualificando-a como mero esteticismo, mas, isto sim, a aceitar o itinerário proposto, analisando com sensatez e humildade o caminho que se visa percorrer. Esta posição exclui uma transcendência exclusiva da beleza, ainda que considerada em relação com a Revelação cristã[8].
Por outro lado, o Cardeal Joseph Ratzinger observava que “foi a partir desta concepção que Hans Urs von Balthasar arquitetou o seu opus magnum de estética teológica,da qual muitos aspectos têm dado entrada no domínio da discussão teológica, embora o seu ponto de partida, que constitui o verdadeiro elemento essencial do todo, quase nem sequer tenha sido recebido. Por certo, em jogo não está, ou principalmente, um problema da teologia; está também um problema da pastoral, que deveria voltar a proporcionar ao homem o encontro com a beleza da fé[9].
A bondade sem a beleza
Como outrora a beleza foi recusada no mundo pagão, quando este se afastou do significado transcendental da criação, recaindo, primeiro na hediondez moral (Rm 1,19ss), e posteriormente na pior das barbáries, aquela que se diz civilizada, também hoje, a beleza edificada ao longo dos séculos pelo cristianismo na civilização ocidental parece novamente despedir-se do mundo, abandonando-o à sua pragmática avidez de divertimento e lucro.
Esta recusa à beleza transcendental, gerada pela falta de amor a Deus em troca do afeto aos bens materiais, só pode conduzir os homens à tristeza e à depressão. Esta frustração caracteriza a mentalidade materialista, a qual contraria a procura do Absoluto inerente à natureza humana.
Com a exclusão da beleza no panorama dos homens, o bem moral perde sua força de atração, obstruindo a evidência de seu dever e a razão última de seu cumprimento. Assim, o homem, perdido diante da escolha entre um bem obnubilado pelo mal, que se mostra cada vez mais excitante, busca no vício a felicidade total que não encontrou na pobre manifestação da virtude.
Em sentido contrário, Von Balthasar afirma que a autenticidade da vida cristã consiste na configuração do cristão com a forma Christi. Esta é a plenitude da bondade na vida cristã. A forma de Cristo está envolta no enobrecimento de todo o âmbito existencial, consistente, em última análise, no progresso espiritual, que nada mais é que a beleza moral da santidade, pois, a forma do cristão consiste na bondade da integridade, a qual é a mais bela realização do quanto se pode dar no âmbito humano[10].
Em consequência, o cristão só responde ao seu chamado pessoal à santidade, e realiza a sua missão no mundo, quando se torna essa forma querida por Cristo, na qual a beleza exterior expressa e corresponde à bondade interior. Somente deste modo o testemunho de uma vida torna-se credível para o mundo, digno de ser amado pela autenticidade da beleza moral.
O brilho da santidade arrebata, pois consiste, em última análise, na participação da própria luz de Cristo infusa pelo batismo e vivificada pela ação da graça. Este entusiasmo pela beleza autêntica da forma Christi convida o homem a considerar com outros olhos a Revelação, e o convoca a este admirabile comercium et connubium entre Deus e o homem[11].
A verdade sem a beleza
De modo semelhante ao que ocorre com a bondade, quando a verdade não está associada ao belo, seus argumentos demonstrativos perdem a força de atração, e, ainda mais grave, sua ponderação lógica.
Constata Von Balthasar que, ao longo da História, o desejo do verum pelo verum havia destruído a comunhão entre os transcendentais, gerando uma hiperatividade especulativa em detrimento de um abandono da beleza, então considerada supérflua. Em resposta, propõe a elevação da teologia à sua causa originária, de maneira que sua compreensão se torne universal, e não apenas baseada em alguma verdade parcial. Este método evita que as proposições se afastem dos princípios originários baseados na verdade absoluta, tornando-se joguetes de verdades minores passíveis às manobras da dialética.
Neste sentido, explicava o cardeal Joseph Ratzinger que “os argumentos, muitas vezes caem no vazio, uma vez que no nosso mundo não faltam argumentações a concorrerem e a contraporem-se entre si, de tal maneira que acaba por se impor espontaneamente aquela máxima que os teólogos medievais resumiram da seguinte forma: ‘a razão tem nariz de cera’, ou seja, se o homem for suficientemente adestrado, é possível dobrá-la nas mais diversas direções. É tudo tão atinado e tão óbvio… contudo, em quem é que havemos de confiar?
Diante desta dificuldade, Balthasar recorda que a beleza se define como “a última palavra até onde pode chegar o intelecto reflexivo, já que é uma auréola de resplendor indelével que rodeia a estrela da verdade e do bem, que são indissociáveis”[12]. A luz salvadora da via da beleza é a guia do náufrago nas instáveis águas da razão, pois como observa o Cardeal Ratzinger, “o encontro com a beleza pode ser visto como esse embate da seta que fere a alma para, assim, lhe abrir os olhos, de modo que ela possa, doravante, e a partir dessa sua experiência, ter critérios de juízo e ter a capacidade de ajuizar com retidão de argumentos”.[13]
O ser sem a beleza
Se isto ocorre com os transcendentais, apenas porque um deles foi descuidado, Balthasar questiona o que acontecerá em relação ao próprio ser.
São Tomás considerava o ser à semelhança de certa luz do ente. Ora, a luz do ser só é autenticamente bela quando a complacência que produz se funda na verdade e na bondade do próprio ser (splendor boni e splendor veri). Fora deste núcleo constitutivo não se dá o belo, seja de que maneira for.
Por esta razão, quando se deseja transmitir uma verdade objetiva sobre os seres, não se poderá realizá-lo sem o aporte da beleza, pois esta ilumina o intelecto na distinção e no conhecimento dos seres. Von Balthasar observa que se esta luz do ser, que é o belo, não estiver presente na linguagem do transmissor, o mistério do ser não se expressa de modo perfeito. Em outras palavras, sem o belo, o ser permaneceria obscuro e incompreensível para o destinatário da mensagem, pois a comunicação da verdade e da bondade sobre determinado ser não seria íntegra, mas apenas parcial[14].
Em suma, enquanto último dos transcendentais, o belo completa e sela a bondade e a verdade em seu verdadeiro eixo, de modo a conceder ao bem toda sua força de atração; ao verdadeiro sua integridade. Desta forma, comunica ao ser a autêntica expressão de si mesmo. Corresponde, pois, à teologia desenvolver a proposta balthasariana da beleza em seu sentido mais autêntico, a fim de que, dessa maneira, a via pulchritudinis seja o raio de luz salvador aos homens de hoje.
Qual é a beleza que salva?
O Cardeal Ratzinger desvenda o verdadeiro sentido da salvação através da beleza, da via pulchritudinis: “Quem não conhece a frase tantas vezes citada de Dostoyevsky: ‘A beleza é que nos há de salvar’? No entanto, quase sempre é esquecido recordar que, com esta beleza salvadora, Dostoievski está a pensar em Cristo. A Ele é que precisamos aprender a ver. Quando não O conhecemos apenas por palavras, mas somos atingidos pela seta da Sua beleza paradoxal, então é que O conhecemos verdadeiramente e ficamos a saber sobre Ele, sem ser apenas em segunda mão. Então, teremos encontrado a beleza da verdade, da verdade redentora. Nada há que melhor nos possa pôr em contato com a beleza do próprio Cristo do que o mundo do Belo criado pela fé, bem como a luz resplandecente no rosto dos santos, através da qual se torna visível a Sua própria luz.[15]
A beleza que salva é, portanto, Jesus Cristo, que, segundo a feliz expressão de São Boaventura, é a manifestação por excelência, pulchritudo omnium pulchritudinum[16]. O cristão somente alcançará essa plenitude na medida em que seu desejo de perfeição busque amorosamente o Bom Pastor.
De fato, Cristo Pastor Belo (Jo 10,11) é para a fé cristã a própria Revelação da beleza incriada vista sob dois aspectos sublimes: primeiro, a beleza harmoniosa do mais formoso entre os filhos dos homens (Sl 45,3), e, segundo, a misteriosa beleza do varão de dores ante quem se volta o rosto (Is 53,2)[17]. Em sua natureza humana unida à divina, Jesus é a matriz de todas as belezas estéticas; em sua paixão e morte de Cruz é a fonte causal e inspiradora de toda beleza moral.
Coerente com este duplo aspecto da beleza de Cristo, o cristão só realiza sua missão quando alcança a plenitude dessa forma Christi. Na luz da santidade e na beleza do sofrimento bem aceito, a luz de Cristo resplandece no exterior do cristão, servindo de salvação para os não-cristãos. Por isso, em Cristo – e só nele – nossa via crucis, se transforma em via lucis. Esta é a plenitude da via pulchritudinis[18].
[1] PAULO VI. Mensagem aos artistas. 08 Dez. 1965.
[2] DOSTOYEVSKY, Fyodor. L’Idiota, parte III, cap. V (Milano 1998), p. 645.
[3] JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. 04 abr. 1999.
[4] BENEDICTO XVI, Mensagem por ocasião da XIII sessão das Academias Pontificias. 24 nov. 2008.
[5] J. VILLAGRASA, Hans Urs Von Balthasar filósofo, Apha Omega VIII 3, 2005, p. 484-485.
[6] J. RATZINGER, Prefacio, in: Dio e il bello in sant’Agostino a cura di J. Tscholl, Milano 1996.
[7] Cf. H.U. v. BALTHASAR, Gloria I, p. 22.
[8] Cf. H.U. v. BALTHASAR, Verbum Caro, Madrid 2001, p. 116.
[9] Discurso enviado ao Meeting de Rímini em Agosto 2002. In: J. RATZINGER, A Caminho de Jesus Cristo, Coimbra: Tenacitas, 2006, p. 41.
[10] Cfr H.U. v. BALTHASAR, Gloria I, p. 30-31.
[11] Cfr H.U. v. BALTHASAR, Gloria I, p. 116-117.
[12] H.U. v. BALTHASAR, Gloria I, p. 22-35.
[13] Discurso enviado ao Meeting de Rímini em Agosto 2002. In: J. RATZINGER, A Caminho de Jesus Cristo, Coimbra: Tenacitas, 2006, p. 41.
[14] Cfr H.U. v. BALTHASAR, Gloria I, p. 32-35.
[15] Discurso enviado ao Meeting de Rímini em Agosto 2002. In: J. RATZINGER, A Caminho de Jesus Cristo, Coimbra: Tenacitas, 2006, p. 45.
[16] Cfr G. MARCHESI, La via della bellezza nell’estetica teologica di Hans Urs von Balthasar’,. PATH 4 (2005), p. 395-412.
[17] FORTE, Bruno. La vía della Bellezza. Un aproccio al mistero di Dio, Brescia 2007, p. 33.
[18] Cf. PONTIFICIO CONSEJO DE LA CULTURA, Via Pulchritudinis, camino de evangelización y de diálogo, Madrid 2008, p. 79-80.
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