Pe. Colombo Nunes Pires, EP
Malaca, hoje pertencente à Federação da Malásia, era um ancoradouro estratégico já no séc. XVI. Conquistada em 1511 por Afonso de Albuquerque, acolheu durante cerca de 150 anos as caravelas lusas que, ostentando ufanamente a Cruz de Cristo, cruzavam esses perigosos mares rumo a Macau e outras paragens do Sudeste Asiático.
Em 1641, a cidade passou para o domínio dos holandeses e posteriormente dos ingleses, os quais a governaram até meados do século XX. Apesar disto, a população católica manteve-se fiel à semente do Evangelho lançada pelos portugueses. Hoje ela é uma ilha de catolicismo em meio ao mar muçulmano que a rodeia. O idioma luso misturou-se ao malaio, dando origem ao Papiar Cristang, que ainda hoje se fala no bairro português de Malaca.
Esse vínculo profundo com a Cristandade não foi, todavia, obra do acaso. Primordialmente, deve-se ele à evangelização de São Francisco Xavier. De 1545 a 1552, Malaca foi para o Apóstolo do Oriente uma espécie de quartel-general, de onde ele partia em missão para os vários países da Ásia. A última estadia do Santo nessa cidade ocorreu, por assim dizer, quando numa de suas igrejas foi sepultado provisoriamente seu cadáver incorrupto, que vinha sendo conduzido da China para a Índia.
As crônicas registram numerosos episódios edificantes, inclusive vários milagres, ocorridos durante sua permanência nessas terras. Em sua obra “A Voz das Ruínas” — publicada em Macau, em 1988 — o sacerdote português Pe. Manuel Pintado transcreve alguns deles.
Penitência severa e salutar
Durante certo tempo, um português chamado João de Eiro foi servidor do Pe. Francisco Xavier, acompanhando-o sempre em suas visitas. Contudo, sua vida espiritual não era muito sólida, pois demonstrava grande avidez por dinheiro. Numa ocasião, recebeu uma avultada quantia destinada às atividades apostólicas do grande missionário e tentou apropriar-se dela, em vez de entregá-la imediatamente. Mas este tomou conhecimento do péssimo ato e — embora fosse normalmente muito indulgente com todos — julgou de seu dever aplicar ao culpado uma penitência exemplar pela grave falta. Mandou Eiro para a ilhota de Pulau Java, que ficava praticamente coberta de água durante a maré alta. Ali o servidor desonesto passou muitos dias, num abrigo por ele mesmo construído, alimentando-se do que conseguia pescar.
Certa noite, sem saber se estava sonhando ou tendo uma visão, viu-se ele numa bela igreja em cujo presbitério se encontrava a Santíssima Virgem sentada num trono, com o Menino Jesus ao colo. De modo afável mas firme, Ela censurou-lhe seus numerosos pecados. Eiro ouviu, de joelhos, as palavras da divina Acusadora e reconheceu quanto andara mal. Por fim, a Virgem ordenou-lhe que se levantasse e ele deixou a igreja… Quando voltou a si, na dura realidade da vida na ilhota, estava impressionadíssimo.
Na manhã seguinte, o Pe. Francisco chamou-o de volta a Malaca, aconselhando-o a confessar-se. Ele assim o fez, mas nada disse acerca do sonho ou visão. No entanto, o missionário inquiriu-o sobre o assunto. Surpreso e perturbado, Eiro tentou encobrir o fato. O confessor insistiu, mas ele inexplicavelmente continuava a negar tudo. O Pe. Francisco narrou-lhe, então, detalhadamente, todo o sonho ou visão que seu penitente procurava ocultar na confissão. À vista disto, Eiro acabou por reconhecer mais esta falta, convencido de que o missionário era realmente um homem de Deus. Mais tarde, ele fez uma declaração pública sob juramento, a propósito deste assunto.
Um mês depois, dócil e arrependido, João de Eiro viajou para a Índia, onde se tornou frade franciscano e, em avançada idade, faleceu em odor de santidade.
Caranguejos de São Francisco
É comum encontrarem-se no Estreito de Malaca caranguejos marcados por uma cruz na carapaça, conhecidos como “caranguejos de São Francisco Xavier”. A tradição popular relaciona-os com um milagroso episódio ali ocorrido. Numa de suas viagens, o grande missionário foi surpreendido por uma terrível tempestade nas proximidades de Malaca. Enquanto rezava, implorando a Deus a bonança, caiu ao mar seu crucifixo. Isto causou-lhe grande tristeza.
Um soldado português, Fausto Ferreira, narra como ele foi reencontrado:
“No dia seguinte, ao desembarcarmos na ilha de Baramurah, caminhávamos pela praia, quando vimos um caranguejo fora d’água transportando um crucifixo! O animal deslocou-se na direção do Pe. Francisco, que caiu de joelhos, tendo o caranguejo permanecido quieto. Em seguida, largou o crucifixo e desapareceu no mar. Depois de beijar repetidamente o seu tesouro reencontrado, permaneceu em oração durante meia hora, no que o acompanhei com alegria, para agradecer a Deus Nosso Senhor este portentoso milagre”.
A inveja inutiliza um grandioso plano
Em maio de 1552, o Pe. Francisco chegou a Malaca procedente de Goa, empenhado nos preparativos finais para sua viagem à China. Nessa época, era proibida a entrada de mercadores estrangeiros e de missionários no então chamado Império do Meio. Qualquer transgressor da lei corria risco de prisão imediata.
Assim, decidiu o Santo lá chegar por vias diplomáticas. Para isto, dispôs as coisas de modo a entrar no séqüito do embaixador do Rei de Portugal, cargo para o qual foi credenciado Diogo Pereira, seu íntimo amigo. Este gastou todo o seu patrimônio na equipagem da caravela Santa Cruz, aquisição de trajes à altura de sua elevada função e de presentes para o Imperador.
Quando tudo estava pronto para a partida, surgiu um obstáculo inesperado. Movido por inveja, o governador da fortaleza de Famosa, Álvaro de Ataíde, exigiu para si o cargo de embaixador, alegando que Diogo Pereira não tinha as qualificações necessárias para tal.
De nada adiantaram as ponderações do Pe. Francisco, nem a intervenção de altas personalidades. O governador da fortaleza detinha o controle das entradas e saídas de embarcações, e só autorizou a partida da caravela sob a condição de que nela não embarcasse Diogo Pereira.
Foi um dia muito triste para o Pe. Francisco, pois significava o fim de suas esperanças de entrar por vias diplomáticas na China. Em carta escrita a seu amigo após a partida de Malaca, o missionário lamenta: “Sou responsável pela perda desse dinheiro e agora pela perda do seu barco e de toda a sua fortuna. Por favor, não me venha visitar, porque ao vê-lo o meu coração fica despedaçado”. A carta traz como fecho: “O seu triste e desolado amigo, Francisco”.
Conhecendo embora os riscos que corria, o intrépido apóstolo de Cristo tentou conseguir ajuda de mercadores chineses para chegar a Pequim. Com esse objetivo, permaneceu na ilha de Sanchuão, a 80 quilômetros de Macau.
Após alguns meses de esforços infrutíferos, faleceu o santo missionário em 3 de dezembro de 1552. Seu corpo foi sepultado numa urna com bastante cal, a fim de que, consumidas as carnes, os ossos pudessem depois ser transportados facilmente para o jazigo de alguma igreja.
Três meses e meio após sua morte, Jorge Álvares, capitão de uma nau prestes a partir de Sanchuão, mandou exumar o corpo. Para surpresa geral, este não só estava incorrupto, mas exalava um agradável perfume. Chegando a Malaca, todos os seus habitantes, cristãos e não-cristãos, acorreram com lágrimas nos olhos para receber solenemente e prestar honras ao corpo do Santo missionário. Formou-se uma grande procissão do porto até a Igreja de São Paulo, onde ele foi sepultado por um ano, antes de ser transferido para Goa. Hoje em Malaca restam dessa igreja apenas as robustas paredes e várias lápides funerárias. Numa capela lateral restaurada, encontra-se o túmulo vazio do grande Apóstolo do Oriente. Não se conserva ali nenhuma relíquia sua. Há apenas — e quão mais valiosa! — a viva recordação do Santo impressa indelevelmente nas incontáveis almas que acorrem em grande número à pequena capela, para suplicar ou agradecer sua proteção.
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