“Escrevo em obediência a Vós, meu Deus, que o ordenais por meio de Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo de Leiria e da Santíssima Mãe vossa e minha.
“Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais ao alto um Anjo com uma espada de fogo na mão esquerda; centelhando emitia chamas que parecia que iam incendiar o mundo; mas se apagavam a contato com o esplendor que Nossa Senhora irradiava com sua mão direita. Disse com forte voz: Penitência! Penitência! Penitência! E vimos em uma imensa luz que é Deus: ‘algo semelhante a como as pessoas se vêem em um espelho quando passam diante dele’ a um Bispo vestido de Branco ‘tivemos o pressentimento de que fosse o Santo Padre’ .
Também a outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma montanha íngreme, em cujo cume havia uma grande cruz de madeiras toscas como se fosse de carvalho com a casca. O Santo Padre, antes de chegar a ela, atravessou uma grande cidade em meio a ruínas e meio tremulante com passo vacilante, pesaroso de dor e pena, rezando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado em cima do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande cruz, foi morto por um grupo de soldados que dispararam vários tiros de arma de fogo e flechas; e do mesmo modo morreram uns após os outros os homens e mulheres de diversas classes e posições. Sob os dois braços da cruz havia dois Anjos cada um deles com uma jarra de cristal na mão, nas quais recolhiam o sangue dos Mártires e regavam com ele as almas que se aproximavam de Deus”.
Comentário Teológico do Cardeal Joseph Ratzinger
O comentário Teológico do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé está dividido em três partes: 1) Revelação pública e revelações particulares, seu lugar teológico; 2) A estrutura antropológica das revelações privadas; 3) Uma tentativa de interpretação do segredo de Fátima.
1) “O termo ‘revelação pública’ designa a ação reveladora de Deus destinada a toda a humanidade, que encontrou sua expressão literária nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama‑se ‘revelação’ porque nela Deus deu‑Se a conhecer progressivamente aos homens, até o ponto de tornar‑Se Ele mesmo Homem, para atrair para Si e para reunir em Si todo o mundo por meio de seu Filho encarnado, Jesus Cristo. Em Cristo Deus disse tudo, quer dizer, manifestou‑Se a Si mesmo e, portanto, a Revelação concluiu com a realização do mistério de Cristo que encontrou sua expressão no Novo Testamento”.
2) A “revelação particular” , ao contrário, “refere‑se a todas as visões e revelações que têm lugar uma vez terminado o Novo Testamento; é esta categoria dentro da qual devemos colocar a mensagem de Fátima. A autoridade das revelações particulares ‑ prossegue o Cardeal Ratzinger ‑ é essencialmente diversa da única Revelação pública: esta exige nossa fé”. A revelação particular, ao contrário, “é uma ajuda para a fé, e se manifesta como crível precisamente porque remete à única Revelação pública”.
Citando o teólogo flamenco E. Dhanis, o então Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé afirmava que “a aprovação eclesiástica de uma revelação particular contém três elementos: 1) a mensagem em questão não contém nada que vá contra a fé e os bons costumes; 2) é lícito torná‑lo público e 3) os fiéis estão autorizados a dar‑lhe em forma prudente a sua adesão”. “Uma mensagem assim pode ser uma ajuda válida para compreender e viver melhor o Evangelho no momento presente; por isto não se deve descartar. É uma ajuda que é oferecida, mas que não é obrigatório fazer uso da mesma”. O Cardeal Ratzinger sublinha também que “a profecia no sentido da Bíblia não quer dizer predizer o futuro, mas explicar a vontade de Deus para o presente o qual mostra o reto caminho para o futuro”.
A parte mais importante do Comentário Teológico está dedicado a “uma tentativa de interpretação do segredo de Fátima”. Do mesmo modo que a palavra chave da primeira e da segunda parte do “segredo” é a de “salvar almas”, a “palavra chave deste ‘segredo’ é o tríplice grito: ‘Penitência! Penitência! Penitência!’. Vem à mente o começo do Evangelho: “Paenitemini et credite in Evangelio” (Mc 1,15). Compreender os sinais dos tempos significa compreender a urgência da penitência, da conversão e da fé. Esta é a resposta adequada ao momento histórico, que se caracteriza por grandes perigos e que serão descritos nas imagens sucessivas. Permito-me inserir aqui uma lembrança pessoal: em uma conversa comigo, Irmã Lúcia me disse que lhe era cada vez mais claro que o objetivo de todas as aparições era o de fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade. Todo o resto era somente para conduzir a isto”.
3) Depois, o Prefeito da Congregação para a Fé passa a vista às “imagens” do segredo. “O Anjo com a espada de fogo à direita da Mãe de Deus lembra imagens análogas às do Apocalipse. Representa a ameaça do Juízo que incumbe sobre o mundo. A perspectiva de que o mundo poderia ser reduzido a cinzas em um mar de chamas, hoje não é considerada absolutamente pura fantasia: o próprio homem preparou com suas invenções a espada de fogo”.
“A visão mostra depois a força que se opõe ao poder de destruição: o esplendor da Mãe de Deus, e proveniente sempre dele, a chamada à penitência. Deste modo é sublinhado a importância da liberdade do homem: o futuro não está determinado de um modo imutável, e a imagem que as crianças viram não é um filme antecipado do futuro, do qual nada poderia mudar. Em realidade, toda visão tem lugar somente para chamar a atenção sobre a liberdade e para dirigi‑la em uma direção positiva. (…) Seu sentido é o de mobilizar as forças da mudança para o bem. Por isso estão totalmente fora de lugar as explicações fatalísticas do “segredo” que dizem que o atentado do 13 de maio de 1981 teria sido definitivamente um instrumento da Providência. (…) A visão fala mais dos perigos e do caminho para salvar‑se dos mesmos”.
Passando às seguintes imagens, “o lugar da ação ‑ explica o cardeal Ratzinger ‑ aparece descrito em três símbolos: uma montanha escarpada, uma grande cidade em meio a ruínas, e finalmente uma grande cruz de troncos rústicos. Montanha e cidade simbolizam o lugar da história humana: a história como custosa subida para o alto, a história como lugar da humana criatividade e da convivência, mas que ao mesmo tempo como lugar das destruições, nas quais o homem destrói a obra de seu próprio trabalho (…) Sobre a montanha está a cruz, meta e ponto e orientação da história. Na cruz a destruição se transforma em salvação; levanta‑se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma”.
“Aparecem depois aqui pessoas humanas: o Bispo vestido de branco (‘tivemos o pressentimento de que fosse o Santo Padre’), outros Bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e estratos sociais. O Papa parece que precede aos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o rodeiam. Não somente as casas da cidade estão em meio a ruínas, mas seu caminho passa no meio dos corpos dos mortos. O caminho da Igreja se descreve assim como uma Via Crucis, como caminho em um tempo de violência, de destruições e de perseguições.
Nesta imagem, não se pode ver representada a história de todo um século. Do mesmo modo em que os lugares da terra estão sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade, e estão orientados para a cruz, também os tempos são representados de forma compacta”.
“Na visão podemos reconhecer o século passado (XX) como século dos mártires, como século dos sofrimentos e das perseguições contra a Igreja, como o século das guerras mundiais e de muitas guerras locais que encheram toda a sua segunda metade e fizeram experimentar novas formas de crueldade. No ‘espelho’ desta visão vemos passar os testemunhos de fé de decênios”.
O Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé afirma também que na via crucis deste século “a figura do Papa tem um papel especial. Em sua fadigosa subida à montanha podemos encontrar indicados com segurança juntos diversos Papas, que começando por Pio X até o Papa atual compartilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram para avançar entre eles pelo caminho que leva à cruz. Na visão também o Papa é morto no caminho dos mártires. Não poderia o Santo Padre quando, depois do atentado de 13 de maio de 1981 fez‑se levar o texto da terceira parte do ‘segredo’, reconhecer nele seu próprio destino? Teria estado muito próximo das portas da morte e ele mesmo explicou ter sido salvo com as seguintes palavras: ‘foi uma mão materna a que guiou a trajetória da bala e o Papa agonizante deteve‑se no umbral da morte’ (13 de maio de 1994). Que ‘uma mão materna’ tenha desviado a bala mortal mostra mais uma vez que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são poderosas, que podem influenciar na história e, que ao final, a oração é mais forte que as balas, a fé mais potente que as divisões”.
“A conclusão do segredo – prossegue o Cardeal Ratzinger – lembra imagens que Lúcia pode ter visto em livros piedosos, e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar maleável pelo poder salvador de Deus uma história de sangue e lágrimas. Os Anjos recolhem sob os braços da cruz o sangue dos mártires e regam com ela as almas que se aproximam de Deus. O Sangue de Cristo e o sangue dos mártires estão aqui considerados juntamente: o sangue dos mártires flui dos braços da cruz. Seu martírio se realiza de maneira solidária com a Paixão de Cristo e se converte em uma só coisa com ele”.
“A visão da terceira parte do segredo, tão angustiosa em seu início, conclui com uma imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão e, precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja de mártires, converte‑se em sinal orientador para a busca de Deus por parte do homem (…) do sofrimento dos testemunhos deriva uma força de purificação e de renovação, porque é atualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite no presente sua eficácia salvífica”.
O que significa em seu conjunto (em suas três partes), o “segredo” de Fátima, foi perguntado por último ao Cardeal Ratzinger. “Antes de tudo devemos afirmar como o Cardeal Sodano: ‘os acontecimentos aos que se refere à terceira parte do ‘segredo’ de Fátima parecem pertencer já ao passado’. Na medida em que se refere a acontecimentos concretos já pertencem ao passado. Quem tinha esperado impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o curso futuro da história ficará desiludido. Fátima não nos oferece este tipo de satisfação de nossa curiosidade, o mesmo que a fé cristã não quer e não pode ser um mero alimento para nossa curiosidade. O que fica de válido já vimos de imediato ao início de nossas reflexões sobre o texto do ‘segredo’: a exortação à oração como caminho para a ‘salvação das almas’ e, no mesmo sentido, a chamada à penitência e à conversão”.
“Gostaria ao final de voltar ainda sobre outra palavra chave do ‘segredo’, que com razão fez‑se famosa: “O Meu Coração Imaculado triunfará”, o que quer dizer isto? Que o coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que os fuzis e que qualquer outro tipo de arma. O fiat de Maria, a palavra de Seu coração, mudou a história do mundo porque Ela introduziu no mundo o Salvador, porque graças a este ‘sim’ Deus pode se tornar homem em nosso mundo e assim permanece agora e para sempre. O maligno tem poder neste mundo, o vemos e o experimentamos continuamente; ele tem poder porque nossa liberdade se deixa afastar continuamente de Deus”.
“Mas desde que o próprio Deus tem coração humano e desse modo dirigiu a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal já não tem a última palavra. Desde aquele momento cobram todo seu valor as palavras de Jesus: “Padecereis tribulações no mundo, mas tende ânimo, Eu venci ao mundo” (Jo, 16,33). A mensagem de Fátima nos convida a confiar nesta promessa”.
Fonte: ACI Digital
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