“As únicas jóias que embelezam a esposa de um Rei Crucificado são os espinhos e a Cruz”, disse a Santa Gema Galgani o seu Anjo da guarda. Desde muito jovem Gema via o seu Anjo, conversava com ele e até mesmo rezavam juntos. Eram companheiros inseparáveis.

A jovem possuía uma beleza privilegiada, sua mãe havia falecido, seu pai entrara em falência, a melhor solução para todos estes problemas seria encontrar um esposo rico para a moça. O que não seria difícil. Para isso, deram-lhe de presente duas belas jóias: um relógio de pulso e um crucifixo para portar ao pescoço. O presente agradou muito a pequena Gema, que foi logo ver no espelho como lhe caiam e que efeito produziria nos outros.

Apenas tendo consentido nesta pequena vaidade, viu atrás de si um jovem de rara beleza, radiante de luz, mas entristecido e quase zangado que lhe fitava com olhar severo. “As únicas jóias que embelezam a esposa de um Rei Crucificado são os espinhos e a Cruz”. A partir desse dia, nunca mais Santa Gema se adornaria com outras jóias que não fossem essas apresentadas por seu Anjo.[1]

Conversar com o próprio Anjo da Guarda, como quem fala com um amigo íntimo ou um irmão é um fato extraordinário, que raras vezes acontece. Mas, os Anjos comunicam-se conosco, por meio de uma linguagem que não é de palavras, e  mais frequentemente do que se pensa. Basta ter espírito de fé e ter a atenção voltada para as realidades sobrenaturais.

A doutrina católica ensina que Deus designa um Anjo para guardar cada homem desde o instante de seu nascimento. Esse Anjo não terá outro a quem proteger durante toda a história da humanidade, mas somente aquele. São estes celestes guardiões que nos amparam permanentemente em nossa peregrinação terrena. [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9]

Acontece que nem todas as pessoas têm esse relacionamento tão direto com o seu próprio Anjo da guarda, como o tinha Sta. Gema. Entretanto, de alguma maneira, sempre estamos nos relacionando com o nosso Anjo, e, sobretudo, ele conosco. Mas como se dá essa comunicação se não possui corpo material, e, portanto, não tem boca nem língua? Como conversam os Anjos?

O doutor angélico nos explica que os Anjos podem se comunicar de duas maneiras distintas, tanto com os homens quanto entre si: pela iluminação e pela simples locução.

A iluminação é o ato pelo qual se manifesta uma verdade. [10]  Assim se diz que um Anjo ilumina outro quando lhe manifesta uma verdade que conhece e que lhe foi revelada por Deus e que o outro desconhece ou conhece em grau inferior. Esta iluminação é concedida por Deus a todos os Anjos, mas nem todos a recebem – ou aproveitam – de igual modo.[11] Isto, entretanto, não se deve a uma deficiência do modo pelo qual Deus os ilumina, mas porque a capacidade de apreender é maior para uns e menor para outros.

Para exemplificar a tese, o Pseudo-Dionísio nos oferece a imagem da difusão do raio de sol, que “atravessa sem dificuldade a primeira matéria, a mais translúcida de todas, e, através dela, faz brilhar mais luminosamente os próprios reluzimentos”, mas que, assim que ela choca com matérias mais opacas, “mais reduzida é sua manifestação difusiva, em razão da inaptidão das matérias iluminadas em possuir um hábitus transmissor do dom da luz”, que decresce pouco a pouco até que por fim a transmissão se torne mais ou menos impossível[12]. Portanto, a razão desta insuficiência no aproveitamento da iluminação por parte dos Anjos inferiores deve-se apenas à sua maneira menos perfeita de compreender as verdades que lhes são propostas. Por isso os Anjos superiores transmitem aos inferiores o que viram de Deus.

Segundo São Tomás a iluminação é feita da seguinte maneira: um fortalecimento, por parte do Anjo superior, da capacidade que o Anjo inferior tem de conhecer, o que se pode dar simplesmente com a sua presença ou pela solicitude deste para com o Anjo inferior, como se lhe estimulasse a fim de que pudesse conhecer verdades de ordem mais elevada.[13]

Como já vimos, o Anjo superior tem uma capacidade maior de apreender essas verdades sobrenaturais que o Anjo inferior, então para que este possa entender aquilo que o Anjo superior quer lhe transmitir é necessário da que o Anjo superior fragmenta seu conhecimento para que o Anjo inferior consiga entender. O exemplo que o próprio São Tomás dá para esta teoria é de um professor que tem um conhecimento muito amplo da matéria que leciona e que ao apresentá-la aos alunos divide-a em partes coerentes e ordenadas, de modo que os alunos possam entendê-la. Evidentemente, os alunos terão um conhecimento da matéria muito inferior e mais fracionado em relação ao do professor, portanto menos rico. Assim se passa com os Anjos.[14]

Esta forma de comunicação só se dá da parte dos Anjos superiores para com os Anjos inferiores, mas existe uma outra forma de comunicação, que é a simples locução, na qual também os Anjos inferiores “falam” aos superiores. São Tomás explica que a locução tem por finalidade manifestar algo desconhecido àquele com quem se fala ou pedir-lhe alguma coisa.[15]

A locução se distingue da iluminação, porque a iluminação se refere às verdades que procedem de Deus como verdade primeira. A locução tem por objeto a revelação daqueles conhecimentos que dependem da vontade do comunicante e que São Tomás denomina “segredos do coração”. Não são verdades essenciais; são dados da própria consciência pessoal, cuja manifestação está debaixo do selo da própria vontade. Daí a liberdade característica de tal comunicação da intimidade[16].

Evidentemente, a comunicação dos Anjos uns com os outros não se expressa com sons, palavras ou outro elemento material, pois sua natureza é puramente espiritual. A sua comunicação corresponde a um ato de vontade de que outros Anjos conheçam ou compreendam conceitos que possuem e que conservam ocultos, e podem inclusive dar a conhecer a uns e não a outros, conforme sua vontade.[17] Assim, os Anjos falam também a Deus, perguntando-Lhe coisas, pedindo esclarecimentos, louvando-O e glorificando-O.[18]

Isso que no Anjo é co-natural, no homem pode se dar pela graça. Um Anjo superior pelo simples fato de voltar-se para o inferior já lhe amplia a capacidade cognoscitiva.[19] Nós poderíamos sentar ao lado de São Tomás de Aquino durante uma semana que provavelmente não ficaríamos mais inteligentes, mas por uma graça de Deus poderíamos ficar. O exemplo prototípico disso é o cumprimento de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel. Maria provavelmente não deu uma aula filosófica à sua prima, mas o simples fato de Ela ser quem é e estar ali próxima e de fazer ouvir sua voz, foi o suficiente para que Santa Isabel percebesse estar ali a Mãe do Messias e para santificar São João batista no claustro materno.

É sem dúvida essa “iluminação” que nos move a querermos estar próximos das pessoas de quem gostamos, pois sentimos que alguma coisa nos eleva e nos atrai.

E sobre o que conversam os anjos? Saberemos dentro de alguns dias…


[1] Basilio, p. 25 e 26.

[2] Cf. Catéchisme du Concile de Trente, Parte 4, Cap. 39, n. 1.

[3] Cf. JOÃO XXIII, Discurso do 2 de outubro de 1960.

[4] Cf. VALBUENA, Jesús, Introdução à questão 113, p. 932. Suma Teológica, BAC, Madrid, 1950

[5] Cf. BASÍLIO, São, Contra Eunômio, Livro 3, n. 1.

[6] Cf. ORÍGENES, Comentários ao Evangelho de São Mateus, 5.

[7] Cf. JERÔNIMO, São, Commentaire sur Saint Matthieu, Tomo 2, Livro 3, Cap. 18.

[8] Cf. JOÃO XXIII, Discurso na Basílica de Santa Maria dos Anjos de 9 de setembro de 1962.

[9] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 113.

[10] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.

[11] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 4, resp.

[12] La diffusion du rayon solaire traverse sans difficulté la première matière, la plus translucide de toutes, et, à travers elle, fait briller plus lumineusement ses propres resplendissements, mais que, dès qu’elle se heurte aux matières plus opaques, plus réduite est sa manifestation diffusive, en raison de l’inaptitude des matières éclairées à posséder un habitus transmetteur du don de lumière, et elle décroît peu à peu de ce niveau jusqu’à ce que finalement la transmission devienne à peu près impossible (DIONÍSIO, La Hiérarchie Céleste, Chap. XIII, 3).

[13] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.

[14] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.

[15] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 2, resp.

[16] La locución se distingue de la iluminación, porque la iluminación se refiere a las verdades que proceden de Dios como primera verdad. La locución tiene por objeto la revelación de aquellos conocimientos que dependen de la voluntad del comunicante y que Sto. Tomás denomina “secretos del corazón”. No son verdades esenciales; son datos de la propia conciencia personal, cuya manifestación está bajo el sello de la propia voluntad. De ahí la libertad característica de tal comunicación de la intimidad (BARRENECHEA, José Maria, Introdução às questões 103 a 119, p. 878) Suma Teológica, 4ª ed., BAC Maior, Madrid, 2001.

[17] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 2, resp.

[18] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 107, a. 3, resp.

[19] Cf. AQUINO, São Tomás de, Suma de Teología, I pars, quest. I, q. 106, a. 1, resp.