2. A Constituição Civil do Clero: os fatos.

Robespierre

Consideramos anteriormente as três profundidades da Revolução: sua ação que atinge primeiramente as tendências, passando em seguida, pelas idéias, e que, então, se lança nos fatos. Contudo “erros geram erros, e as revoluções abrem caminho umas para as outras[1]”; foi o que se verificou, com a primeira revolução (Humanismo e Pseudo-Reforma), que preparou o terreno para a segunda: a Revolução Francesa. Observa ainda o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira que “todas as tendências, todo o estado de alma, todos os imponderáveis da explosão luterana já traziam consigo, de modo autêntico e pleno, embora implícito, o espírito de Voltaire e de Robespierre[2]”. Influenciadas as tendências, o próximo passo deu-se no domínio do pensamento; com efeito, há muito tempo que a Revolução Francesa vinha sendo preparada pela filosofia iluminista, e este fator ideológico constitui uma de suas origens, de tal forma que:

“Na primavera de 1789, na França, o primeiro espetáculo que se oferece ao viajante estrangeiro é o de um povo que não cessa de discorrer. Milhares de panfletos ou jornais circulam livremente nos salões, nas sociedades de leitura e nos cafés. Colados nos muros, eles fazem das ruas um lugar de reunião e de educação política. Homens que se descobrem cidadãos repetem o tema – cem vezes retomado pelos filósofos do século – da regeneração social[3].”

Salões, cafés ou clubes, eram pontos de encontro dos membros destas sociedades revolucionárias, que “constituíram muito cedo o vasto laboratório em que se experimentavam a linguagem, as práticas, as representações da democracia […], o aprendizado do discurso igualitário, […] o reino da opinião[4]”. De onde vinham estas novas correntes? Afirmam os historiadores que em meados do reinado de Luís XV, incontáveis pequenas sociedades, que agiam conjuntamente começaram a pulular e a se desenvolver no solo francês. Eram elas “animadas do mesmo espírito, ‘patriota’ e ‘filosófico’, e mal dissimulavam as mesmas visualizações políticas, sob pretextos oficiais de ciência, de beneficência ou de prazer[5]”. Tais sociedades desempenharam um importante papel, dando à filosofia “um império sobre a opinião, até então sem precedentes[6]”, difundindo desta maneira a nova mentalidade do Iluminismo. Cumpre ressaltar ainda o papel de sociedades de cunho secreto, as quais, no processo revolucionário, tiveram grande papel:

“Produzir um processo tão coerente, tão contínuo, como o da Revolução, através das mil vicissitudes de séculos inteiros, cheios de imprevistos de toda ordem, nos parece impossível sem a ação de gerações sucessivas de conspiradores de uma inteligência e um poder extraordinários. Pensar que sem isto a Revolução teria chegado ao estado em que se encontra, é o mesmo que admitir que centenas de letras atiradas por uma janela poderiam dispor-se espontaneamente no chão, de maneira a formar uma obra qualquer, por exemplo a “Ode a Satã”, de Carducci.”

As forças propulsoras da Revolução têm sido manipuladas até aqui por agentes sagacíssimos, que delas se têm servido como meios para realizar o processo revolucionário[7].

No caso da Revolução Francesa, parece-nos patente esta visualização, pois, mesmo historiadores da época não hesitaram em afirmar que o levantamento da opinião pública foi fruto de uma grande conspiração, como, por exemplo, Barruel[8], que denuncia um complô de tripla coligação: 1º uma conspiração dos filósofos da impiedade contra o Deus do Evangelho, e até mesmo contra toda religião cristã. Seu objetivo era destruir os altares de Jesus Cristo. 2º uma conspiração dos sofistas da rebelião, atentando contra todos os tronos dos reis. 3º uma conspiração dos sofistas da impiedade e da anarquia contra toda religião, todo tipo de governo, de sociedade civil, e mesmo contra qualquer espécie de propriedade. Explica ainda o autor que estes últimos, sob o nome de “iluminados” e unidos aos dois primeiros, formaram o clube dos jacobinos, que tanta influência exercera durante a Revolução. É igualmente interessante notar o paralelo entre o ataque à Igreja e à autoridade real; Diderot mesmo escrevera em sua poesia “Les Éleuthéromanes ou les Furieux de la Liberté”, de 1772: “E suas mãos urdiriam as entranhas do padre, na falta de uma corda para estrangular os reis[9]”.

Enfim, é inegável o importante papel da filosofia neste período, pois:

Jean-Jacques Rousseau

“A Revolução Francesa é o resultado lógico das idéias ‘ilustradas’, tal como se tinham desenvolvido em França, desde 1750, com Voltaire, Diderot e Rousseau (1712-1778). Baseados no direito natural, aspirava-se à ‘igualdade’ geral, mas, isso estava unido a um ódio declarado contra a religião revelada e contra toda Igreja hierárquica[10].”

Contundo, além do problema ideológico, outros fatores contribuíram para originar a Revolução Francesa. Ao vendaval da nova filosofia, ajuntou-se a perspectiva econômica, pois, com efeito, havia já certo tempo que as finanças no reino definhavam. Entretanto, mesmo com o espectro de uma crise

Voltaire

financeira crônica diante de si, a França se engajou junto com os Estados Unidos, sustentando-os em sua guerra de independência contra a Inglaterra (1775-1783).

O resultado concreto foi a vitória americana e o aumento considerável do déficit financeiro francês[11]. A este sombrio quadro econômico somaram-se ainda as más colheitas dos anos antecedentes à Revolução, que inflaram vertiginosamente o preço dos cereais. Acrescentou-se igualmente o rigorosíssimo inverno de 1788-1789 que trouxe grandes avarias às plantações: “raízes congeladas a um pé sob a terra, perda das árvores frutíferas, desespero dos vinhateiros e medo da carestia[12]”. Todos estes elementos contribuíram para desencadear a avalanche que se seguiu; sem embargo do que, não podemos pôr de lado uma “peça chave”, sem a qual as vicissitudes teriam sido outras: o rei Luís XVI.

Contam os historiadores que este monarca “era de espírito liberal e generoso: cristão muito sincero, [porém,] praticava com uma deplorável serenidade o perdão das injúrias[13]”. Tal proceder do soberano francês era a conseqüência inevitável de uma alma educada e modelada segundo os princípios de Fénelon[14] e de Rousseau: “ele tinha, além do mais, sofrido a ação de seu século e, tendo lido Rousseau – como qualquer outro – cria na bondade [intrínseca] do homem[15]. Em suma, seu caráter era vacilante e influenciável, pois “ele não sabia querer[16]”; isto nos faz entender melhor a célebre apóstrofe do Conde de Mirabeau a seu respeito: “O rei tem apenas um homem, é a sua mulher[17]”. Deste modo, constatamos que, este navio que era a nação francesa singrava, com sua efervescente tripulação, diretamente rumo à tempestade; e para agravar o quadro, o capitão não estava apto para enfrentar a borrasca, amainar os ânimos, e congregar as opiniões. O pior é que, ao soçobrar, este barco procurará levar consigo ao fundo do abismo, a Igreja Católica.

Diante destes fatores originários da Revolução Francesa perguntamo-nos o que permitia ainda que o edifício do Antigo Regime permanecesse de pé, nos anos antecedentes à Revolução. A “tradição”, responde-nos Madelin; porém, esta, mesmo sendo a alma do regime, aos poucos deixou de sustentá-lo, pois “a filosofia o havia minado ocultamente, antes de jogá-lo por terra[18]”. E conclui metaforicamente o historiador, que, nas vésperas da Revolução, o Antigo Regime era “um corpo cuja alma o abandonava[19]”.

Por fim, Luís XVI, apesar da manifesta exaltação das paixões da opinião pública de seu reino, julga conveniente a convocação da assembleia dos deputados; tal ato propiciou a coligações dos fatores que vimos acima, fazendo-os eclodir numa das maiores revoluções da história. O pobre monarca perceberia tarde que esse seu gesto inconsciente e cheio de boa vontade acabaria por terminar o lânguido processo da morte de seu reino. Isto se explica, pois, há muito que o movimento das ideias – imbricado com a enciclopédia nascente – preparava o golpe: a influência do pensamento de Voltaire, Rousseau, d’Alembert, Diderot, e outros, fizera destes filósofos “os diretores de consciência da maioria dos deputados do clero e da nobreza[20]”, da mencionada assembleia. Em suma, “os que agiam às escuras estavam, após meio século de propaganda ‘filosófica’, prontos para iniciarem a investida[21]”, enquanto o rei, por sua parte, “ignora ainda a potência desta ‘república das letras’” e, ao querer remediar as crises internas de seu reino, convoca imprudentemente a reunião dos Estados Gerais[22]: “Ele queria reformas [mas não percebe que é] a Revolução que está aí[23]”.

Assembléia dos Estados Gerais

Como vimos, tendencialmente influenciada pelo protestantismo e ideologicamente imbuída da filosofia iluminista, parte da opinião pública francesa estava pronta para dar o terceiro passo: a revolução nos fatos, que se fará, em grande parte, na assembleia dos Estados Gerais, e no que dela sucedeu, como veremos. Em dita reunião, cuja abertura dera-se aos 5 de maio de 1789, toda a população estava representada por delegados das três ordens do reino: clero, nobreza e povo. Contudo, aos 17 de junho, o tiers état[24] – em detrimento do poder real – se auto-proclama “Assembleia Nacional”, e logo é respaldado pelo clero, que, em sua maioria, vem juntar-se à revolta nascente (19 de junho). No dia seguinte os delegados da Assembleia Nacional juram não se separarem antes de ter dado à nação francesa uma nova constituição: no horizonte começa a delinear-se o calvário da Igreja Católica no Reino Cristianíssimo.

Pe. Michel Six, EP.

                    Extrato da monografia “A perseguição à Igreja durante a Revolução Francesa: aspecto desconhecido de uma etapa do processo revolucionário”


[1] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra Revolução. 5. ed. São Paulo: Retornarei, 2002. p. 46.

[2] Ibid. p. 44.

[3]Au printemps de 1789, en France, le premier spectacle qui s’offre au voyageur étranger est celui d’un peuple qui ne cesse de discourir. Des milliers de pamphlets ou de journaux circulent librement dans les salons, les sociétés de lecture et les cafés. Placardés, ils font des rues un lieu de réunion et d’éducation politique. Des hommes qui se découvrent citoyens redisent le thème, cent fois repris par les philosophes du siècle, de la régénération sociale”. BERTAUD, Jean-Paul. Les Origines de la Révolution Française. Presses Universitaires de France, 1971. p. 5. (Tradução do autor).

[4] FURET, François; OZOUF, Mona. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 476.

[5]Animées du même esprit ‘patriote’ et ‘philosophe’, et cachant mal des visées politiques semblables, sous des prétextes offiels de science, de bienfaisance ou de plaisir”. COCHIN, Augustin. La Révolution et la Libre-Pensée. Paris: Copernic, 1979. p. 15. (Tradução do autor).

[6]Un empire sur l’opinion, sans example jusque-là”. Ibid. p. 17. (Tradução do autor).

[7] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra Revolução. 5. ed. São Paulo: Retornarei, 2002. p. 55-56.

[8] Cf. BARRUEL, Abbé. Mémoires pour servir à l’Histoire du Jacobinisme. Hambourg: P. Fauche, 1798. Vol. I. p. XXI-XXII.

[9]Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre, au défaut d’un cordon pour étrangler les rois”. DIDEROT, Denis. Œuvres Complètes de Diderot: Revues sur les éditions originales, comprenant ce qui a été publié à diverses époques et les manuscrits inédits conservés à la Bibliothèque de l’Ermitage, par J. Assézat. Paris : Garnier Frères, 1875. p. 16.

[10]La Revolución francesa es el resultado lógico de las ideas ‘ilustradas’, tal como se habían desarrollado en Francia desde 1750 con Voltaire, Diderot y Rousseau (1712-1778). Basados en el derecho natural, se aspiraba a la ‘igualdad’ general, pero esto iba unido a un odio declarado contra la religión revelada y contra toda Iglesia jerárquica”. LORTZ, Joseph. Historia de la Iglesia: En la perspectiva da la Historia del Pensamiento. Trad. J. Rey Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982. Vol. II, Edad Moderna y Contemporánea. p. 353. (Tradução do autor).

[11] Além do prejuízo financeiro, este conflito trouxe à França as novas idéias de liberdade, hauridas em solo americano, e difundidas pelos soldados franceses (comandados pelo Marquês de La Fayette) quando de lá voltaram.

[12]Les racines gelées à près d’un pied sous terre, la perte des arbres fruitiers, le désespoir des vignerons et la crainte de la famine”. BERTAUD, Jean-Paul. Op. cit. p. 6. (Tradução do autor).

[13]Il était d’esprit libéral et généreux : chrétien très sincère, il pratiquait avec une déplorable sérénité le pardon des injures”. MADELIN, Louis. La Révolution. Paris: Hachette, 1933. p. 28. (Tradução do autor).

[14] Cf. ESQUIER, Geneviève. Une histoire chrétienne de la Révolution Française. Paris : Éditions de l’Escalade, 1989. p. 26.

[15]Il avait en outre subi l’action de son siècle et, ayant lu Rousseau tout comme un autre, tenait l’homme pour bon”. MADELIN, Louis. Op. cit. p. 28 (Tradução do autor).

[16]Il ne savait pas vouloir”. Loc. cit. (Tradução do autor).

[17]Le roi n’a qu’un homme, c’est sa femme”. Apud. MADELIN, Louis. Op. cit. p. 30. (Tradução do autor).

[18]La philosophie l’avait sourdement miné avant de le jeter bas”. Ibid. p. 10. (Tradução do autor).

[19]Un corps que l’âme abandonnait”. Loc. cit. (Tradução do autor).

[20]Les directeurs de conscience de la majorité des députés du clergé et de la noblesse”. ESQUIER, Geneviève. Op. cit. p. 51. (Tradução do autor).

[21]Ceux qui agissaient dans l’ombre étaient, après un demi-siècle de propagande ‘philosophique’, prêts à donner l’assaut”. Ibid. p. 52. (Tradução do autor).

[22] Os Estados Gerais eram as assembléias, nas quais se reuniam os deputados representantes das três ordens do reino (clero, nobreza e povo), que o rei convocava em situações graves, a fim de consultá-los; antes da reunião de maio de 1789, a última a ser convocada fora em 1614, pela então regente, Maria de Médicis, após o assassinato de Henrique IV.

[23]Il voulait des réformes. Mais la Révolution est là”. ESQUIER, Geneviève. Op. cit. p. 51. (Tradução do autor).

[24] Nome usado para designar o povo, e seus representantes, nos Estados Gerais.