Ítalo Santana Nascimento
Causaria certa impressão − se procurando numa biblioteca algumas obras de autores renomados, para um estudo, um trabalho ou para proveito da vida espiritual − nos deparássemos de repente com o seguinte título: o Livro que Deus escreveu. O mais desmotivado dentre os homens não conseguiria conter o desejo de desvendar esta atraente incógnita.
Leríamos com atenção exímia cada página, degustando capítulo por capítulo. No entanto, em determinado momento, encontraríamos palavras ou expressões cujo sentido nos pareceria ambíguo, meio obscuro, e difícil de ser compreendido numa primeira apreciação. Notaríamos também o uso de símbolos, figuras, enigmas – recursos tão próprios, aliás, ao modo comum de se exprimir – mas que a nossos olhos, teriam possivelmente dois ou mais significados. Isto aconteceria porque apesar de possuir autor divino, este livro foi escrito em linguagem humana.
Assaltaria nosso espírito uma série de perguntas que podem resumir-se em duas questões: Como compreender o verdadeiro sentido do que Deus quis nos dizer em algumas dessas passagens? Quais critérios devemos usar para interpretar com tino e exatidão as expressões dúbias recolhidas ali?
Escritura celeste, linguagem terrestre
Esta pequena metáfora ilustra brevemente o que se passa com a Sagrada Escritura. Ela é a “Palavra de Deus em linguagem humana”[1], e por este motivo, ao mesmo tempo celeste e terrestre. Celeste porque divina, ditada pelo Espírito Santo[2], uma autêntica carta do Deus Onipotente à sua criatura para que a medite e a estude, dia a dia, podendo assim aprender a conhecer o coração de seu Criador[3]; terrestre porque humana, escrita por hagiógrafos humanos, que embora tenham sido excitados por Deus a escrever e assistidos por Ele enquanto escreviam,[4] contudo, conservavam suas características pessoais, as do ambiente histórico em que viviam e da cultura que os influenciava ao exercerem este sublime encargo.[5]
Levando em conta este dado, aventurarmo-nos a interpretar a Sagrada Escritura sem alguns pré-requisitos pode ser uma tarefa que nos leve a perigosos desvios. O próprio príncipe dos apóstolos, São Pedro, advertia os primeiros cristãos a propósito das cartas de São Paulo contra esse perigo: “… nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras (2Pd 3,16b). Este versículo nos faz ver que se não nos localizarmos neste mar de particularidades, especialmente as que têm relação com o autor, não entenderemos alguns trechos da Bíblia.
Para melhor esclarecer, tomemos dois exemplos. Um escritor indiano ao discorrer sobre um assunto teológico o envolveria em tantas maravilhas, coloridos e belezas, frutos das meditações e transcendências de que sua alma é cheia, que talvez se perdesse um pouco na precisão das definições. Já um autor alemão, naturalmente metódico e organizado, se preocuparia em expor o conteúdo doutrinário com plena fidelidade, bem esquematizado para não haver confusões, mas sem os floreios e contornos de uma mentalidade oriental. O que torna fácil concluir que o primeiro princípio para uma leitura ou um estudo proveitoso da Escritura é sabermos distinguir com todo o cuidado qual a índole, o caráter, e a condição social de cada autor sagrado, em que tempo viveu, de que fontes – escritas ou orais – se serviu, etc. [6] Com esses dados, poderemos assimilar melhor o que eles quiseram dizer em seus escritos.
Cientes destes pormenores, observemos por outro lado que as verdades reveladas contidas na Bíblia não foram escritas de uma única forma. Ao redigirmos um texto, podemos fazê-lo de forma poética, com rimas e ritmos, com o fim de que seja inclusive cantado ao som de vários instrumentos; podemos ao invés, dar-lhe uma conotação mais séria visando ensinar e admoestar; compor uma magnífica história, repleta de detalhes que prendam o olhar de quem está lendo, como as sábias e inesquecíveis parábolas do Redentor; ou também relatar um fato, que se encerre com uma benéfica aplicação moral. Ora, a literatura sagrada também – e ela, sobretudo – comporta muita riqueza de expressão, e os hagiógrafos serviram-se de semelhantes recursos de linguagem quando a puseram por escrito. O segundo princípio consiste então em saber identificar qual ou quais destes gêneros literários foram utilizados pelo autor.[7]
Interpretar tudo “ao pé da letra”?
E se por acaso, buscando nas Sagradas Letras a vontade divina, descobrirmos passagens cujo significado nos parece ambíguo ou confuso, não fiquemos aflitos. A leitura ou estudo da Bíblia, ainda que munido de piedade e de temor a Deus, encontra de vez em quando algum embaraço, sobre o qual, vitoriosos, crescemos na fé. Para estarmos protegidos contra esses presumíveis bloqueios, convém sabermos que uma palavra pode ter muitos significados, mas ao ser empregada pelo autor, este elege um entre os demais, e então temos o ‘sentido’ da palavra segundo o contexto da frase[8]. Sem embargo, esta norma não é de si absoluta, pois o autor poderia ao escrever querer referir-se, simultaneamente, a diversas realidades ou a diversos graus de realidade.[9]
Passemos por cima destas muitas minúcias e particularidades, e tomemos para a boa interpretação um terceiro princípio: os sentidos que podem desprender-se de uma palavra são divididos em dois grupos: o literal e o figurado.[10] O sentido literal é aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos inspirados.[11] Por exemplo, dizemos boi, e por este nome entendemos o animal que costuma ser chamado por este nome. Pelo contrário, o sentido figurado se mostra “quando as mesmas coisas, que denominamos com seu termo próprio, são também tomadas para significar algo diferente”[12]. Por exemplo, ao lermos “Não atarás a boca ao boi que tritura o grão” (1Cor. 9,9), interpretamos, sob o consenso da Igreja, que a palavra boi alude ao anunciador do Evangelho, conforme São Paulo deu a entender.[13]
Nem sempre, portanto, os textos devem se interpretados “ao pé da letra”, e sim com cautela, deve-se tentar descobrir seu sentido mais profundo. É característico dos textos bíblicos, por ser a Palavra de Deus, a capacidade de poderem iluminar contextos e circunstâncias antigas e novas, diversas situações do presente e de épocas históricas passadas.[14]
Quando nossa dúvida recair sobre o sentido literal de alguma frase ou palavra, é bom refazermos a leitura, pois as palavras tomadas em sentido próprio ou literal,de modo geral, não dão margem a ambiguidades dissipáveis com facilidade. E se, porém, a ambiguidade surgir a respeito de palavras de sentido figurado, devemos primeiro verificar se não a estamos tomando em sentido literal[15], e depois disso, compará-las com outras passagens ou observá-las no contexto, o que auxilia enormemente a solucionar a dúvida.
Ainda pode ocorrer que uma mesma palavra ou expressão seja empregada figuradamente com dois sentidos. É o que acontece com a palavra “leão”, que designa Cristo na passagem em que está dito: “Eis que o leão da tribo de Judá venceu” (Ap 6,5), e designa o demônio na passagem: “Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar” (1Pd 5,8). O que mais interessa consequentemente é investigar se a palavra duvidosa está se referindo a um sentido próprio ou figurado[16], e esforçar-se por compreender o que o autor queria dizer.[17]
Em síntese, quem interpreta a Escritura deve tentar encontrar e expor o sentido literal das palavras que o hagiógrafo pretendia exprimir, e indagar o sentido espiritual nos passos onde realmente conste que Deus o quis expressar.[18]
(Continua no próximo post)
Revisão: Tiago Geraldo (Mestre em Teologia Bíblica)/Guy de Ridder
[1] JOÃO PAULO II. A interpretação da Bíblia na Igreja. Discurso de Sua Santidade o Papa João Paulo II e documento da Pontifícia Comissão Bíblica. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2006. Pag. 37.
[2] Cf. LEÃO XIII, Carta Encíclica Providentissimus Deus. Disponível em << www.vatican.va.>> Acesso em 12 nov. 2010, n. 83.
[3] Cf. SANTO AGOSTINHO. PL 77, 706 A-B.
[4] Cf. LEÃO XIII, Carta Encíclica Providentissimus Deus. Disponível em << www.vatican.va.>> Acesso em 12 nov. 2010, n. 84.
[5] Cf. POTTERIE, Ignacio de la. Exegese Cristã Hoje. A Exegese Bíblica – Ciência da Fé. Tradução de Silva Debetto Cabral Reis. Petrópolis: Vozes, 1996. Pag. 148-149.
[6] Cf. PIO XII, Carta Encíclica Divino Afflante Spiritu. Disponível em << www.vatican.va.>> Acesso em 12 nov. 2010, n. 19.
[7] Cf. CHARBEL, Pe. Antônio. Estudos Bíblicos Modernos: Introdução geral e especial aos Livros do Velho e do Novo Testamento. São Paulo: Edameris, 1961. Pag. 88-90.
[8] Cf. Idem. Pag. 171.
[9] Cf. JOÃO PAULO II. A interpretação da Bíblia na Igreja: Discurso de Sua Santidade o Papa João Paulo II e documento da Pontifícia Comissão Bíblica. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2006. Pag. 95.
[10] AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 2002. Pag. 42: “Toda doutrina reduz-se ao ensino das coisas e dos sinais. Mas as coisas são conhecidas por meio dos sinais.”
[11] Cf. JOÃO PAULO II. A interpretação da Bíblia na Igreja: Discurso de Sua Santidade o Papa João Paulo II e documento da Pontifícia Comissão Bíblica. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2006. Pag. 95.
[12] AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 2002. Pag. 99.
[13] Cf. Idem. Pag. 99.
[14] Cf. Idem. Pag. 159: “O homem que segue só a letra toma como próprias as expressões metafóricas, e nem sabe dar a significação verdadeira ao que está escrito com palavras próprias”.
[15] Cf. Idem. Pag. 151-159.
[16] Cf. Idem. Pag. 181.
[17] Cf. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luíza Jardim Amarante. 18. Ed. São Paulo: Paulus, 2005. Pag. 379: “Portanto, enquanto cada um procura compreender nas Sagradas Escrituras o que o autor quis dizer, que mal há em interpretá-las em outro sentido, se Tu, ó Luz de todas as mentes sinceras, mostras ser verdade, ainda que não seja aquilo que o autor quis dizer? Também ele, de fato, entendeu dizer a verdade, embora não precisamente aquela verdade”.
[18] Cf. PIO XII, Carta Encíclica Divino Afflante Spiritu. Disponível em << www.vatican.va.>> Acesso em 12 nov. 2010, n. 16.
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