Antonio era um funcionário exemplar. Morava na grande São Paulo e era encarregado da câmara fria de congelados de um frigorífico.
Certo dia, no final do expediente, quando todos os funcionários se preparavam para voltar aos seus lares, Antonio foi conferir se a última encomenda de carne estava bem alojada e se o número de peças entregues coincidia com a nota fiscal. Ele entrou na câmara de congelados, regulada com a temperatura quinze graus negativos, contou as carnes, estava tudo perfeito. Quando se dirigiu à porta, constatou que estava preso sem poder sair. A câmara era muito antiga, e só abria por fora. Devido à pressa – a velha inimiga da perfeição – ele não havia prendido a porta devidamente. Por um momento, ele não acreditou no que se passava. Ele estava trancado na câmara fria de congelados, sob uma temperatura de quinze graus abaixo de zero! Tirou o celular do bolso, mas não havia sinal. Não havia meio de comunicar-se com o exterior, não adiantava nem gritar, pois ele era sempre o último empregado a sair da firma. O que fazer?
Começou a sentir aquele frio cortante dentro da câmara. Ao ver as peças de carne, ele logo pensou que se permanecesse parado terminaria sua vida como elas: congelado. Sem demora, começou a mover as caixas e peças de carne de um lado para o outro dentro da câmara fria; não poderia descansar um momento que fosse, pois caso seu corpo esfriasse, ele congelaria.
Do lado de fora, enquanto alguns funcionários entravam nos seus automóveis, e outros se dirigiam à parada de ônibus a fim de retornarem ao aconchego do lar, somente um empregado permanecia na firma. Era o guarda noturno que estava a postos a fim de vigiar o patrimônio da empresa durante a noite.
Passado um tempo, ele notou que um funcionário não havia saído. Antonio era o funcionário mais amável da firma. Ele sempre cumprimentava todo mundo, interessando-se pela vida e pela família de seus companheiros. Sempre tratava a todos com muito estima e calor. Havia até ganhado um prêmio na firma como funcionário exemplar, tal era a amizade que demonstrava a todos, fossem iguais, inferiores ou superiores. Uma das pessoas que era objeto de seu desvelo era o guarda noturno.
Sentindo falta daquele cumprimento, percebeu que Antonio não saía e julgando que poderia ter acontecido algo, o guarda pôs-se a procurá-lo em todas as dependências do prédio. Após quase uma hora, no momento que já estava quase para desistir, pensando que talvez Antonio tivesse saído sem ele perceber, tomou o caminho de volta para seu posto de guarda. “Mas Antonio sempre se despede, por que ele não iria me cumprimentar hoje?”, pensou ele. Então, voltou a procurar o seu gentil amigo.
Surpreso por encontrar a luz da câmara fria acesa, entrou nela, e viu Antonio carregando as peças de carne. Antônio correu ao encontro do guarda e lhe deu um abraço.
– O que aconteceu? perguntou o guarda, surpreendido.
– Você salvou a minha vida! respondeu Antonio, emocionado.
Os dois saíram lentamente da câmara para não ter o choque térmico e Antônio voltou a dizer:
– Você salvou a minha vida, muito obrigado.
E o guarda respondeu:
– Não, não fui eu quem te salvei. Foi a sua gentileza. Senti a sua falta, pois todos os dias você me cumprimentava e se interessava por mim. Então vim te buscar. Tu foste salvo pela gentileza…
O que diz a teologia sobre a gentileza?
Na teologia católica, a gentileza é um efeito da mais excelente das virtudes teologais, a que permanece por toda eternidade, em suma, a que mais caracteriza o cristão como discípulo do Divino Mestre (Cf. Jo 13,1-35): a caridade. Sua importância e preeminência são tais que o Santo Padre Bento XVI dedicou duas encíclicas e uma exortação apostólica ao tema.[1] Talvez por ter discernido que o homem contemporâneo sente uma crise de afeto, a qual o leva a procurar incessantemente o amor onde quer que se encontre.
A gentileza é uma forma de afeto que se insere no que São Tomás chama de “amor de amizade”, o mais sublime dos amores meramente humanos. O querer bem a quem se ama, também é chamado amor de benevolência. Só é possível ter esse amor de amizade para com seres racionais capazes de retribuir o amor segundo a razão, pois conforme o Doutor Angélico ensina, a amizade se funda em alguma “comunicação”, em mútua benevolência. Assim, para ele quando se diz que um animal é amigo do homem ou vice-versa, é dito apenas analogamente, ou seja, somente pela semelhança à amizade que um homem pode ter a outro homem, pois é impossível ter amizade a um objeto ou qualquer ser irracional, pois diferentemente do amor de concupiscência, o amor de amizade exige reciprocidade racional.
São Tomás passa a recordar que a amizade íntegra e autêntica, segundo Aristóteles, possui cinco elementos característicos:
1. o amigo quer que o amigo exista e viva; 2. quer-lhe bens; 3. faz-lhe bens; 4. tem prazer em conviver com ele; 5. concorda com ele, alegrando-se e entristecendo-se ambos com as mesmas coisas.[2]
Por isso, nada é tão próprio à amizade como conviver. Pela amizade quer-se o bem ao amigo e a tudo o que lhe pertence. Na Bíblia, um dos exemplos mais patentes desta amizade é a de Jônatas com Davi. Diz a Escritura que “a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi, e Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo” (I Sm 18, 1). Para querer e fazer bem segundo o princípio aristotélico da amizade, “Jônatas fez um pacto com Davi, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que usava e deu-o a Davi, juntamente com as suas roupas, a espada, o arco e o cinturão” (I Sm 18, 3-4). Esta amizade foi tão intensa, que sobrepôs o amor paterno. De fato, Jônatas defendeu a Davi do invejoso ódio de seu pai, o Rei Saul (Cf. I Sm 19,1; 20,17).
Nosso Senhor Jesus Cristo, também demonstrou este tipo de amor. Quando, por exemplo, chorou pela morte de Lázaro, ou quando recebeu o beijo de Judas, não hesitando em dirigir-se a ele de forma pungente: “Amigo, com um ósculo traís o filho do homem?” (Lc 22,48). A inflexão de voz nesta frase não seria certamente toda pervadida de afeto e amizade? Outro exemplo da amizade do Homem-Deus pode se constatar em seu encontro com Maria Madalena no Domingo da Ressurreição. O fato narrado no Evangelho deixa entrever este sentimento de amizade; contudo, por causa da união pessoal da natureza humana e divina em Jesus, esta amizade toma outra perspectiva. A do amor de Deus à criatura. Jesus era homem completo e perfeito, e, por isso, deveria possuir também a amizade humana em relação à Madalena e a seus discípulos. Da parte de Maria, além da amizade humana, havia a caridade e um alto grau de admiração pelo Mestre, expresso num verdadeiro sentimento de discipulado, veneração e dulia, para não dizer latria.
É verdade que a gentileza se caracteriza como um amor meramente humano, no entanto, é o amar mais semelhante à virtude sobrenatural da caridade. Quando este amor natural ao homem transcende ao plano sobrenatural através da infusão da graça transforma-se na virtude sobrenatural da caridade. É para essa gentileza luminosa e divina que nós cristãos somos chamados.
Ao participar da gentileza heróica de Cristo, que morreu na Cruz para nos salvar, praticamos a esse exemplo sublime nossa gentileza. Essa caridade, entendida como uma participação da própria caridade divina é um penhor de salvação, não somente por nos dar os meios para realizar as boas obras junto a nossos irmãos, mas porque é a essência da própria santidade. Ser santo significa participar da caridade divina, ter a inabitação da Santíssima Trindade, estar em estado de graça. Essa é pois a substância da gentileza cristã. Não sem razão, pode-se dizer que tal como Antônio, um dia seremos salvos pela “gentileza”.
Autor: Marcos Eduardo Melo dos Santos
Revisão: G. de Ridder/ T. Geraldo
[1] Bento XVI publicou duas encíclicas sobre a temática: A primeira, Deus caritas est em 2005, e a terceira, Caritas in veritate em 2009. Em 2007, foi publicada uma Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Eucaristia como fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, Sacramentum Caritatis.
[2] Aristóteles. Moral. lib. 9, cap. 4. In: _______. Obras Completas. t. 1. Buenos Aires: Anaconda, 1947. p. 251-252. (IX Ethic. Lect. 4). São Tomás cita este texto em latim na IIª-IIae q. 25 a. 7: “Quinque quae sunt amicitiae propria. Unusquisque enim amicus primo quidem vult suum amicum esse et vivere; secundo, vult ei bona; tertio, operatur bona ad ipsum; quarto, convivit ei delectabiliter; quinto, concordat cum ipso, quasi in iisdem delectatus et contristatus”.
Salve Maria!
Amei este artigo,quanto ensinamento,quanta verdade para colocar-mos em prática.
Obrigada por nos ensinar a valorizar nosso próximo.